terça-feira, 23 de abril de 2024

Carlos Andreazza - Tesoura voadora

O Globo

“Éramos felizes e não sabíamos” antes da existência das redes sociais. Talvez. Nada contra o saudosismo. Idealizações do passado compõem o acervo das conversas jogadas fora e não raro acomodam, diluem, nossas incompreensões (e outros impulsos do pequeno xandão havido em cada um de nós). Têm seu valor.

Era mais feliz quando o adversário não passava por mim sem que eu nem sequer visse a bola. Quem nunca contestou o passar do tempo — o drible fácil do garoto de 20 anos — com fantasias sobre a própria juventude? Tem a ver com reação. Poderia lhe aplicar uma tesoura voadora. Fazê-lo voar. Mais provável que não o acertasse; que o machucado fosse eu.

Tem a ver com controle. Com a perda de controle. Tudo bem, não sendo você juiz da Suprema Corte. Não sendo o juiz sob cujos inquéritos, onipresentes e eternos, pratica-se censura prévia. Em redes sociais.

O “éramos felizes e não sabíamos” de Alexandre de Moraes expressa autoritarismo. Um poderoso, o poderoso máximo do país, inconformado — não com a existência das redes sociais — com a impossibilidade de controlá-las. E então: tesouras voadoras.

Tem a ver com a necessidade de exercer poder, acostumado e estimulado o ministro a dominar e resolver. A seu modo. Nosso delegadão moderador abridor de picadas-precedentes.

Tem a ver com Brasília, com o que aquele universo deturpa. Com os mandatos que distribui. Ministros do Supremo podem tudo. É o que a vida na capital lhes informa, de convescote em convescote. É mais fácil controlar em Brasília. A agenda da semana passada ilustra. Tudo se acerta, república à margem.

Moraes encontrou-se com Arthur Lira, a quem já se serve café morno, e o enquadrou — sem precisar de tesoura voadora. Interlocutores da dupla venderam uma “conversa dura”. Duro é acreditar. O presidente da Câmara vinha brincando de plantar boatos sobre CPI para apurar excessos do Judiciário. Instrumentalizou a grita bolsonarista para esquentar um pouco o café. Foi decerto lembrado, jurisprudências ao vento, que o STF lhe terá o foro infinitamente e tem sido gentil. De kit de robótica não se ouviu mais falar.

O ministro também esteve no Senado. Foi lá que disparou seu “éramos felizes e não sabíamos”. É de lá que vem — plantada por Davi Alcolumbre, só menos poderoso que Moraes — a projeção de que, sendo ainda mais conservadora a Casa a partir de 2026, inevitável será um processo de impeachment contra integrante do STF.

Alcolumbre, que nunca deixou de presidir o Senado, armou seu gabinete na Comissão de Constituição e Justiça, desde onde opera milagres como o que fez, pelas verbas da Codevasf, as bacias dos rios São Francisco e Parnaíba chegarem ao Amapá. Ele vocaliza o ânimo do Congresso ante o Supremo legislador que corrige-preenche omissões do Parlamento.

Ânimos conservadores mudam, indignações arrefecem, a depender dos progressismos. Brasília se acerta. Enquanto se especula com as chances de impeachment de ministro do STF na próxima legislatura, testam-se — na mesma CCJ — os humores da sociedade ante a emenda constitucional, a PEC do Quinquênio, que turbinaria os salários de juízes.

(À parte Fux, líder sindical histórico dos togados, seria bom saber o que pensam os outros supremos a respeito dessa “mentalidade antiquíssima”, também “mercantilista”, patrimonialismo que coloniza o Brasil.)

O presidente Lula jantou com sua bancada no STF. Moraes esteve presente, onipresente. Como seus inquéritos. O estado de vigília — este 8 de Janeiro permanente — que sustenta, em proteção à democracia, transformou ministro em instituição, mesmo na personificação da Justiça; arbitrariedades, em instrumentos garantidores da saúde pátria. É possível que transforme essas minhas críticas em ataques.

A bancada do governo no Supremo, promotora do expansionismo criador do terceiro turno parlamentar, cobrando ao Planalto postura ativa em defesa de seus senadores no tribunal; Moraes tendo liderado o esforço que assegurou o mandato da democracia — logo, claro, de Lula. As coisas se confundem. Confundem-se as fronteiras, os limites, e eventos assim se tornam naturais.

Brasília se resolve. Havendo cargos e grana para as emendas de comissão, nova fachada do orçamento secreto e fundo eleitoral paralelo em ano eleitoral, resolve-se. Pacto arrecadatório para a partilha dos gastos, beleza. Todo mundo quer uma PEC do Quinquênio para si.

E Lira, café aquecido, foi ter com Rui Costa, da Casa Civil. Prometeu não se vingar do governo. Já indicara o novo chefe do Incra em Alagoas. Vida que segue. Depois de manipular o bolsonarismo como ferramenta de pressão e dar trela ao risco de “agenda-bomba”, o Lirão compõe. Brasília se acerta, havendo dinheiro. Resolve-se. Fabrique-se, conforme autoriza o natimorto (vulgo arcabouço) fiscal. Haverá.

A rapaziada é feliz e sabe.

Hoje encerro esta jornada no GLOBO. Foram quase oito anos neste lote. Prazer e honra. Fui feliz. Sou gratíssimo. Grato sobretudo aos leitores, que fizeram da coluna sucesso e referência.

 

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