Folha de S. Paulo
Senador quer mais pretos pobres presos; crime
organizado festeja a estupidez
Diante de crises de violência,
a cartilha da desinteligência penal brasileira prescreve os seguintes
mandamentos: criminalizar novas condutas; aumentar penas de condutas já
criminalizadas; ampliar o rigor da execução da pena; prender quanto mais,
melhor; e "guerra às drogas".
Diante de qualquer problema social, nosso instinto primitivo manda atacar com
direito penal. E dispensa qualquer evidência sobre eficácia.
A cartilha também prevê outros entorpecentes para acalmar a sensação de insegurança: permitir ao policial torturar e matar sem consequência; isentar a polícia de qualquer controle real; politizar a polícia. Pede ainda a contribuição de um Judiciário e um Ministério Público lenientes e corresponsáveis. E solicita a governadores uma frase machona: "vai mirar na cabecinha"; "tô nem aí".
Essa política estatal dá resultado.
Institucionaliza uma das polícias que mais matam e morrem no mundo. Aumenta
exponencialmente o encarceramento
e a execução de pretos e pobres. E oferece centro de treinamento
para o crime organizado nas prisões.
A correlação entre o crescimento da população
carcerária, da corrupção policial
e do poder de organizações criminosas, que já elegem representantes e ocupam a
burocracia, se faz evidente.
Essa desinteligência tem, entre seus
principais operadores, políticos cujo principal apelo eleitoral é o fígado. Não
resistem em perpetuar esse círculo vicioso. A cidadania perde no seu direito à
vida, à liberdade, à segurança (sobretudo pretos e pobres). Enquanto isso, eles
se elegem. E cidadãos desatentos ganham um suspiro efêmero de sensação de
segurança, que nunca corresponde a indicadores objetivos de segurança.
O senador Rodrigo
Pacheco, advogado criminalista mal versado na sociologia do crime,
entrou na turma. Num acesso de estupidez orgulhosa, resolveu reagir a iminente
decisão do STF de descriminalizar
o porte de maconha. Não por projeto de lei, mas por emenda
constitucional. E não por uma emenda qualquer, mas uma que muda o artigo 5º
da Constituição.
Quer usar nossa declaração de direitos civis
para criminalizar
de uma vez por todas a "posse e o porte, independentemente
da quantidade" (PEC 45/2023).
Pacheco apresenta três argumentos. O primeiro
acusa o STF de promover "invasão da competência do Poder
Legislativo". Com esse argumento, Pacheco sugere o fim do controle
judicial de constitucionalidade. Simula não saber que, na separação de Poderes,
não há monopólio nem exclusividade do Congresso para
a proteção de direitos. Não há mais democracia constitucional sem um tribunal
para incomodar o legislador.
Em seguida, afirma que "o país não pode
permitir descriminalização sem a adoção de políticas públicas". Não
percebe que existe, sim, política pública contra as drogas, sintetizada pela
"guerra às drogas". E é a criminalização que bloqueia e dificulta,
justamente, qualquer outra política pública que enfrente o desafio de forma
eficaz. Há múltiplas alternativas regulatórias.
Em vez de reconhecer a ineficácia do direito
penal como remédio para problema social complexo, o que faz um populista da
desinteligência? Em vez de substituir o remédio, apenas aumenta a dose.
Completou: "a própria existência da
droga já é um perigo em si, por envolver riscos de saúde e potenciais crimes,
que vão da corrupção a homicídios". Esse argumento já não deu nem para
entender. Afinal, a atual política contra drogas apenas multiplica risco
à saúde,
homicídio e corrupção. O senador poderia ao menos mostrar algum dado por trás
da tese heterodoxa.
Por falar em dados, as "Diretrizes
Internacionais sobre a Prevenção do uso de Drogas", um consenso produzido
pela ONU,
recomenda que políticas sejam baseadas em evidências científicas.
Pacheco substitui evidências pela
insapiência. Pratica tolerância zero contra o conhecimento e vai na contramão
de países que estão na vanguarda da política de drogas.
Parece só cinismo, mas é cristalina
ignorância. Ignorância não como falta de capacidade intelectual, mas como
predisposição de ignorar o que importa. A perpetuação
dessa política de drogas, que alimenta tanto o crime quanto o vício,
sem devido tratamento de saúde, precisa de cabeças ousadas como a de Pacheco.
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