segunda-feira, 15 de abril de 2024

Demétrio Magnoli - O juiz da verdade

O Globo

Elon Musk venceu. No confronto que protagonizou com Alexandre de Moraes e o governo, foi acusado de atentar contra nada menos que a soberania nacional. Lula chegou a cobrar-lhe que troque carros elétricos, satélites e redes sociais pelo plantio de capim no Brasil. Disseram — até jornalistas! — que o bilionário “ousou” criticar o STF, como se isso equivalesse a matar Deus. No fim, porém, o presidente da Câmara enterrou o PL das Fake News, projeto de regulação legal das plataformas de redes sociais.

O PL não morreu de Musk nem de Centrão. A causa mortis estava diagnosticada de antemão, em seu nome popular: só uma ditadura seria capaz de distinguir legalmente o discurso político verdadeiro do mentiroso. No fundo, é esse motivo por que existem eleições livres e competitivas. As democracias baseiam-se no consenso mínimo de que o juiz da verdade política é o povo.

Bolsonaro alegou, até diante de embaixadores estrangeiros, identificar “indícios de fraudes” nas urnas eletrônicas brasileiras. O presidente que ataca a credibilidade do sistema eleitoral merece o impeachment, um processo político decidido pelo Congresso. Mas pode o STF proibir cidadãos de repetir tais alegações insubstanciadas em redes sociais? Se a resposta for positiva, o que mais poderiam os juízes supremos?

Lula declarou, celebremente, que a Venezuela tem “democracia até demais” — e isso quando Hugo Chávez subordinava o Judiciário ao Executivo e reescrevia o código penal para perseguir opositores. O PT saúda, ritualmente, os triunfos de Maduro em eleições farsescas e, há pouco, chegou até a celebrar o “feito histórico” de Putin ao se reeleger com 87% dos votos em pleito sem oposição. Teria o STF a prerrogativa de bloquear as contas do presidente e de seu partido nas redes sociais?

Orwell vive. Segundo o bolsonarismo, ditadura (a dos militares, inaugurada em 1964) é democracia. Segundo o lulismo, ditadura (a de Cuba, inaugurada em 1959) é democracia. Como criminalizar o “discurso antidemocrático”, louca pretensão dos arautos do PL das Fake News?

O antigo ditador português António de Oliveira Salazar inventou a “democracia orgânica”. Os países-satélites da URSS na Guerra Fria nomeavam-se “democracias populares”. Viktor Orbán, primeiro-ministro húngaro, prega a “democracia iliberal”. O ex-ministro da Economia Paulo Guedes invocou a necessidade de uma “democracia responsável” ao ruminar a hipótese de uma restauração do AI-5. Em sua mais recente defesa de Maduro, Lula filosofou sobre “democracia relativa”. São, nitidamente, discursos antidemocráticos. Devemos excluí-los das redes por meio de uma lei?

Sob o amparo de um STF sem rumo, Alexandre de Moraes ilustrou sua versão da regulação das redes sociais ao determinar o bloqueio de contas de pistoleiros bolsonaristas. Saltou, assim, da criminalização do que enxerga como discursos criminosos à proibição de discursos futuros — que são, por definição, desconhecidos. Na prática, reinstalou a censura prévia. Orwell: não poucos jornalistas o aplaudiram.

Arthur Lira enterrou, finalmente, o cadáver putrefato do PL das Fake News. No mesmo ato, ousado, anunciou a produção célere, em 40 dias, de um novo projeto de lei. O alicerce do empreendimento exigiria duas abdicações estatais: a renúncia filosófica de distinguir a verdade da mentira e a renúncia jurídica de bloquear contas para censurar o discurso futuro.

As plataformas de redes sociais entregam-se, de corpo e alma, ao impulsionamento de discursos criminosos. A conclamação organizada à violência contra instituições ou grupos sociais faz fortunas para Meta, X e seus congêneres. Contudo o que é crime no mundo real também é crime na esfera virtual. A regulação democrática das redes precisa se concentrar no crime, não na mentira.

Exterminar a “desinformação”? Instaurar o reino imaculado da verdade na política? Esqueça: isso é conversa de santarrões pretendentes a censores. O objetivo deve ser identificar e processar os criminosos — e, ainda, responsabilizar as plataformas pelo impulsionamento do crime virtual. Aí, Musk perde.

 

2 comentários:

  1. Lula nunca quis implantar uma ditadura no Brasil,Bolsonaro ameaçava todos os dias,a diferença é essa.

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