sexta-feira, 12 de abril de 2024

José de Souza Martins* - O artigo 142 e o retorno à língua pátria

Valor Econômico

O STF decidiu o que não é um direito político dos militares e o que são os direitos políticos de todos os brasileiros

Nesta semana, o STF interpretou que o artigo 142 da Constituição de 1988 não outorga às Forças Armadas a função de poder moderador em relação aos poderes da República - o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Ou seja, o Brasil não é uma sociedade de castas. A Corte partiu da premissa de que se tratava de controvérsia semântica. Entendeu que as funções delas são funções de Estado e não de governo. O STF libertou politicamente o povo brasileiro da servidão da tutela política.

Muito mais do que solução para uma controvérsia semântica, a decisão da Corte encerra um lento ciclo histórico que tem um de seus marcos em Lei de 1835. A que proibiu e extinguiu o morgadio, a concentração de bens vinculados nas mãos do morgado, o filho homem e primogênito das famílias gradas.

O morgadio era uma instituição do antigo regime que concentrava a propriedade, impedia a sua fragmentação e sua inserção no mundo da circulação dos bens e da sua mercantilização. O morgadio era uma das referências da mentalidade estamental que ainda demarca quem é quem na estrutura de poder do país, em particular as Forças Armadas. Coisa de um país atrasado, mergulhado na escuridão de um passado remoto.

No meu modo de ver, o ardil antidemocrático do artigo 142 da Constituição de 1988 foi sutil infiltração de uma premissa estamental no corpo de uma Constituição dominada por valores democráticos, os socialmente mais abrangentes que já tivemos. Pelas supostas funções de poder moderador em relação às Forças Armadas, negaria todo o esforço da sociedade brasileira, desde a Independência, no sentido de constituir-se como sociedade igualitária fundada em instituições democráticas.

Questões cruciais da ordem política brasileira ganham sentido com a decisão do STF. O Exército, historicamente, tem agido como tutor da nação. Em vários momentos de golpes e tentativas de golpe, deu a entender que agira em nome do povo porque o povo seria incapaz de agir como povo de cidadãos. Documentos militares, e mesmo civis, de vários momentos de nossa história republicana dão expressas indicações nesse sentido.

A Constituição de 1891 excluiu os analfabetos e, portanto, a maioria dos nossos trabalhadores dos direitos políticos. Nela reforçou os fundamentos estamentais e anti-igualitários do Estado brasileiro. No projeto político de manifestações dos militares, como a Revolução de 1924, em São Paulo, a República colocaria extensa parcela da população entre parênteses, sob regime ditatorial, tutelando-a, até que declinasse o analfabetismo.

O reconhecimento do direito de voto do analfabeto finalmente revogou essa mentalidade. Mas o golpismo subsequente tentou outros caminhos para anular essa conquista, aparentemente na suposição de que os pobres, isto é, os trabalhadores, por suas reivindicações sociais, são eleitores de esquerda e sujeitos da história política.

O falso pressuposto de privilégios de casta em relação aos militares foi revogado pela decisão do STF ao interpretar o artigo 142. Parafraseando George Orwell, pelo avesso, de “A revolução dos bichos”, pode-se dizer que agora, aqui, “todos os brasileiros são iguais e nenhum brasileiro é mais igual do que os outros”.

As sociedades originárias da modernização do mundo ocidental têm se defrontado com a interpretação e confirmação ou não de valores de referência de inovações que mudam o seu perfil. Mas chegar ao perfil social e político da modernidade não se dá no mesmo ritmo em todas elas.

Ao desenvolvimento econômico desigual corresponde a possibilidade do desenvolvimento político desigual, que é o nosso caso. A interpretação vulgar e estamental do artigo 142 quanto ao poder moderador das Forças Armadas é mera expressão social e política de um passado remoto e atrasado que invade o presente.

A decisão do Supremo sobre a equivocada interpretação autoritária de um poder moderador dos militares não é principalmente solução de uma querela semântica. É um ato que revoluciona a estrutura política do país e abre perspectivas de compreensão de quem são aqui os protagonistas da história e quem são os sujeitos políticos do destino da pátria.

O STF decidiu o que não é um direito político dos militares e o que são os direitos políticos de todos os brasileiros. Abriu, assim, as grades de confinamento ideológico do povo, especialmente das novas gerações, as das estreitezas de um país sem futuro social e político. O povo poderá pensar seu destino sem ter que bater continência aos militares. O STF interpreta-lhes as funções como funções de servidores da pátria e que a pátria somos todos nós, esse nós tecido pelo cuidado de delicada fiandeira da cidadania, a Constituição.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. É autor de, entre outros livros, “Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista” (Editora Unesp, São Paulo, 2023).

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