O Globo
Entre a Sexta-feira Santa e a Páscoa,
o Supremo Tribunal Federal (STF)
quase ampliou sem aviso o alcance do foro privilegiado — blindagem que dá
status especial de julgamento a parlamentares, presidentes da República e
outras autoridades. O julgamento foi parado por um pedido de vista do
presidente do tribunal, Luís Roberto
Barroso, mas deverá ser retomado na semana que vem.
A regra em vigor vem de 2018. Foi definida
depois de meses de sessões exibidas pela TV Justiça,
amplamente debatidas pela sociedade. Ela diz que só devem ser julgados no
Supremo crimes cometidos por políticos no exercício do mandato e em razão dele.
Do contrário, os casos são remetidos à primeira e à segunda instâncias, a
depender do status do investigado.
Na época, a decisão foi celebrada por reduzir a quantidade de políticos privilegiados e evitar o acúmulo de processos no STF, além de travar o vaivém de processos que mudavam de foro conforme o político mudasse de cargo e, muitas vezes, prescreviam sem ser julgados.
Com a nova dinâmica, passaram a ficar na
Corte só os casos de crimes cometidos no exercício do mandato. Os outros em
tese deveriam ficar nas instâncias de origem para ser concluídos e, uma vez que
desciam de prateleira, não deveriam subir mais.
Os políticos, porém, estrilaram. Viviam-se
ainda os efeitos da Operação
Lava-Jato, e o STF costumava avalizar decisões dos juízes de
instâncias inferiores. Mas os tempos mudaram, os alvos dos processos mudaram, e
o próprio tribunal mudou.
Hoje quem está na mira da Justiça é
gente como Jair
Bolsonaro e sua turma de golpistas. Ou Chiquinho
Brazão, acusado de mandar matar Marielle
Franco em conluio com o irmão, Domingos.
E não só eles, mas outros que não têm foro privilegiado — como as centenas de
golpistas do 8 de janeiro e até o adolescente que invadiu o Twitter da
primeira-dama — estão sob a batuta do temido Alexandre de
Moraes.
Há, aí, um problema real que a maioria finge
não ver: o que fazer com quem não tem prerrogativa de foro, mas está pendurado
no Supremo. E há o desespero de políticos que sabem não ter chance de
absolvição se forem julgados no STF, por isso tentam tirar seus casos da Corte.
Foi nesse contexto que o ministro Gilmar Mendes decidiu
aproveitar o caso do senador Zequinha
Marinho (Podemos-PA)
para tentar ampliar o alcance do foro. Zequinha foi acusado de tomar 5% dos
salários dos servidores de seu gabinete quando era deputado federal, em 2013.
Desde então, elegeu-se vice-governador do Pará, quando seu caso saiu do
Supremo, e só em 2019 voltou ao Congresso, agora como senador. Zequinha quer
que seu processo, hoje na primeira instância, volte para o STF.
Em seu voto, Gilmar afirma que as idas e
vindas levam à impunidade. Por ele, crimes cometidos por autoridades com foro
devem continuar no Supremo mesmo depois do fim do mandato. No subtexto desse
argumento está a ideia de que só o STF é competente para julgar crimes de
políticos.
Mas um levantamento da Fundação Getúlio
Vargas mostrou que, entre 2011 e 2016 — antes, portanto, de o mecanismo atual
começar a valer —, 68% das ações penais concluídas prescreveram ou foram
repassadas a instâncias inferiores. Só em 0,74% houve condenação.
Não há medidas confiáveis sobre quanto
melhorou a taxa de solução ou diminuiu a impunidade. Mas é certo que a mudança
proposta por Gilmar não é pacífica, tanto que o caso foi para o plenário
virtual, em que os ministros só depositam seus votos numa plataforma digital,
sem TV Justiça ou escrutínio público.
A reação está em curso. Bolsonaristas e
integrantes do Centrão já se mobilizam no Congresso para barrar a proposta.
Entendem que ela é fruto de um casuísmo destinado aumentar os poderes do
Supremo e sufocar o Parlamento. Sabem que os primeiros afetados pela mudança
são os bolsonaristas em geral, mas não querem correr o risco de se ver na mesma
posição.
Também não deixa de ser casuísmo que
políticos que sempre lutaram para ser julgados no STF agora estejam correndo do
tribunal. Mas é muito perigoso a Corte seguir a mesma lógica.
A história recente já mostrou o que acontece
quando juízes resolvem ser políticos. Nessa arena, os profissionais são outros.
Não à toa, quem visita o futuro presidente do Senado, Davi
Alcolumbre (União Brasil-AP),
ouve que ele tem apenas uma certeza sobre o que deverá ocorrer na próxima
legislatura: um impeachment de ministro do Supremo.
Pode até ser bravata, uma vez que nem mesmo o
todo-poderoso Alcolumbre pode prever uma coisa dessas. Mas diz muito sobre o
campo minado onde os ministros do STF estão entrando.
Pois é.
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