Folha de S. Paulo
Descompasso entre lisura dos procedimentos e
financiamento corrupto das eleições é particularidade brasileira
As práticas eleitorais corruptas eram a norma
até o início do século 20 do Reino Unido e da Alemanha, aos países
escandinavos. Todos passaram por notável mudança institucional e hoje são campeões da integridade eleitoral. O que explica o sucesso de
reformas que visaram a eliminação destas práticas?
Esta é a pergunta que Isabela Mares analisa em Protecting the Ballot - How First Wave Democracies Ended Electoral Corruption? (2022). Combinando estudos de casos e métodos estatísticos avançados, a autora argumenta que foi a formação de coalizões majoritárias entre facções dissidentes das elites no poder e setores emergentes fora do poder (partidos ancorados no operariado e setores de renda média). Os conflitos intraelite resultaram de choques econômicos e políticos que solaparam o equilíbrio existente (pelo qual as elites no poder que controlavam recursos impunham seu domínio sobre rivais).
A expansão vertiginosa do eleitorado, via
extensão do sufrágio e da urbanização, aliada ao aumento da renda dos
eleitores, tornou a compra de votos proibitiva para alguns setores das elites.
A prática corrente e aberta de troca de vantagens por voto, restrita até então
a um eleitorado diminuto, estendeu-se para uma massa de milhares de eleitores.
A corrupção também
acarretava custos políticos e reputacionais. A alternativa, então, foi proibir
a compra de voto e mobilizar o eleitorado em bases programáticas (políticas
públicas).
As coalizões variaram de país a país e
dependiam do tipo de prática corrupta, que a autora classifica segundo tipos:
1) compra de voto; 2) violação do segredo do voto; 3) a utilização da máquina
pública; e 4) fraudes na contagem de votos.
O argumento de Mares não pode ser transposto
para o caso brasileiro, mas fornece pistas para a análise. Tivemos relativo
sucesso em aprovar medidas contra os tipos 2) e 4): o sigilo foi garantido com
a cédula pública (1958) e com a urna
eletrônica (1998), que impactou também a contagem, como
mostrei aqui. Nosso problema é o 3). Em termos comparativos, é
surpreendente o descompasso entre o progresso obtido (contra a captação ilícita
de sufrágio, na lisura dos procedimentos eleitorais e contagem de votos) e a
utilização corrupta de contratos de obras públicas, numa escala mastodôntica, para
campanhas eleitorais, como se tornou público em 2014.
Houve escândalos e reforma do financiamento
de campanha (a solução gerou outro tipo de problema: os fundos bilionários de
campanha, que discuti aqui). A reação visceral atual contra o combate à corrupção
vai na direção contrária da melhoria da integridade eleitoral. O espectro da
volta ao padrão anterior de desvios de recursos de estatais e emendas assombra.
Nenhum comentário:
Postar um comentário