Valor Econômico
Situação tem o efeito perverso de colocar em uma camisa de força a capacidade dos governos de atuarem na implementação de políticas públicas que promovam o bem-estar da sociedade
O recente alerta do Fundo Monetário Internacional (FMI) para o aumento do endividamento público resultante da política monetária contracionista, adotada pelos países em geral, levanta uma celeuma que não é nova e para a qual não se vislumbra uma resposta de agrado universal. É claro que o aumento dos juros impacta a dívida dos governos e esse é o resultado natural sempre que os bancos centrais atuam dentro dos cânones para conter a inflação. O ponto de discórdia está na receita de que é preciso cortar despesas orçamentárias para compensar os gastos adicionais com o financiamento da dívida pública, única forma vislumbrada pelo FMI de manter as contas do governo em equilíbrio.
Para uns, a alta dos juros é um benefício a
quem aplica o dinheiro em fundos atrelados a ativos de renda fixa. Nesta visão,
cortes no orçamento público em rubricas que afetam serviços sociais, como
educação, saúde ou segurança pública, representam uma transferência de recursos
dos grupos mais necessitados para as camadas de renda mais alta. Um trade-off
injusto que ampliaria a desigualdade de renda. Nessa mesma linha, há os que
contestam a política de contenção monetária porque isso afeta os investimentos
e o potencial de crescimento da economia. O ex-senador José Serra, do moribundo
PSDB, foi por muito tempo um ativo representante daquela ala.
Para a ortodoxia econômica, parece não haver
dúvida. Juros altos são o único remédio para combater a inflação e precisam ser
acomodados no orçamento público, mesmo que isso requeira cortes em outros tipos
de despesas. No Brasil, o impacto dos juros nas contas do governo é
extraordinário. Quem acompanha as informações oficiais sabe que há tempos o
déficit nominal apurado pelo critério de necessidade de financiamento do setor
público (NFSP) tem sido impactado pela taxa de juros praticada pelo BC. Os
últimos dados, na posição de final de janeiro deste ano, apontam para um
déficit nominal no acumulado de doze meses de 9,06% do PIB, do qual 6,82%
referem-se ao peso dos juros na contabilidade do governo.
O déficit primário - uma invenção do FMI que
apura a NFSP sem computar os gastos com o financiamento da dívida pública - foi
de 2,25% do PIB no acumulado de 12 meses apurado em janeiro passado. É nas
contas apuradas pelo conceito primário, alijadas do efeito dos juros que o
governo contrata sempre que rola a dívida antiga ou que coloca novos papéis no
mercado, que se supõe sejam realizados todos os ajustes necessários para manter
o equilíbrio fiscal. Isso implica cortes em gastos correntes (como o pagamento
do salário dos servidores públicos), nos investimentos públicos e/ou nas
rubricas do orçamento relacionadas com os serviços prestados à sociedade.
O orçamento brasileiro tem despesas rígidas,
de um lado, enquanto que o nível da carga tributária e, portanto, da
arrecadação, está no limite. Para atrapalhar, a voracidade de deputados e
senadores por verba orçamentária tem se revelado inesgotável. Ao fim e ao cabo,
só mágica consegue garantir déficit primário perto de zero.
O Banco Central diz que a dívida bruta do
governo geral (DBGG) - governo federal mais INSS, Estados e municípios - ficou
em 75% do PIB em janeiro. Segundo o BC, foi de 74,3% em fins de dezembro de
2023, abaixo dos 84,6% contabilizados pelo FMI na mesma posição e que agrega ao
conceito os títulos do Tesouro Nacional na carteira do BC. A esse nível de mais
de 80% do PIB de dívida pública bruta o Brasil se aproxima dos países mais
endividados do mundo.
Deve ser ressaltado que, para além do impacto
dos juros, o aumento generalizado do endividamento público em todo o mundo
ainda reflete o efeito fiscal das políticas de compensação da época da covid-19
e, mais recentemente, os gastos militares relacionados à guerra na Ucrânia e o
conflito na Faixa de Gaza. Isso tem afetado especialmente os EUA e os países
europeus integrantes da Otan.
O FMI estima que a dívida pública em geral
continue a crescer a ponto de equivaler a 120% do PIB, em média, entre os
países de economia mais avançada, e a 80% do PIB entre os países chamados
“emergentes” e os de economia de renda média, em 2028. O aumento da dívida dos
governos - também há expectativa de maior endividamento das famílias e do setor
privado - tem sido observado com atenção porque acontece em cenário econômico
nada favorável.
Com orçamento rígido e nível da carga
tributária no limite, só mágica garante déficit primário perto de zero
Parecem longe os anos em que as taxas de
juros reais se mantiveram bem abaixo das taxas de crescimento do PIB, abrindo
espaço para maior acomodação fiscal. O prognóstico de ambiente mais hostil
encontra ressonância nas previsões do próprio FMI de baixa taxa de expansão do
PIB a médio prazo, da ordem de 2% ao ano em média para os países de economia
mais avançada e em torno de 3% ao ano para a taxa média mundial, com expansão
medíocre da produtividade e problemas demográficos.
Para onde se olha, as previsões são
pessimistas. A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE),
que reúne vários países (o Brasil não faz parte), previu recentemente que a
dívida dos governos integrantes da organização passível de ser comercializada
em mercado deve atingir um novo recorde em 2024, com a cifra de US$ 56
trilhões. Somou US$ 40 trilhões em 2019 e US$ 54 trilhões em 2023. Isso reflete
a necessidade dos países de captarem recursos para o enfrentamento de suas
despesas, mas não apenas o setor público tem ampliado o endividamento.
O montante de empréstimos brutos contraído em
geral pelos participantes da OCDE - público e privado - aumentou de US$ 12,1
trilhões em 2022 para US$ 14,1 trilhões em 2023, enquanto que a projeção para
2024 é de US$ 15,8 trilhões, o maior nível jamais atingido. Do total de
empréstimos tomados no ano passado, os Estados Unidos responderam por dois
terços, a maior parte na forma de novas contratações.
A situação em geral tem o efeito perverso de
colocar em uma camisa de força a capacidade dos governos de atuarem naquilo
para o qual são constituídos: a implementação de políticas públicas que
promovam o bem-estar da sociedade.
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