quinta-feira, 4 de abril de 2024

Maria Clara R. M. do Prado - Juros altos puxam a dívida pública

Valor Econômico

Situação tem o efeito perverso de colocar em uma camisa de força a capacidade dos governos de atuarem na implementação de políticas públicas que promovam o bem-estar da sociedade

O recente alerta do Fundo Monetário Internacional (FMI) para o aumento do endividamento público resultante da política monetária contracionista, adotada pelos países em geral, levanta uma celeuma que não é nova e para a qual não se vislumbra uma resposta de agrado universal. É claro que o aumento dos juros impacta a dívida dos governos e esse é o resultado natural sempre que os bancos centrais atuam dentro dos cânones para conter a inflação. O ponto de discórdia está na receita de que é preciso cortar despesas orçamentárias para compensar os gastos adicionais com o financiamento da dívida pública, única forma vislumbrada pelo FMI de manter as contas do governo em equilíbrio.

Para uns, a alta dos juros é um benefício a quem aplica o dinheiro em fundos atrelados a ativos de renda fixa. Nesta visão, cortes no orçamento público em rubricas que afetam serviços sociais, como educação, saúde ou segurança pública, representam uma transferência de recursos dos grupos mais necessitados para as camadas de renda mais alta. Um trade-off injusto que ampliaria a desigualdade de renda. Nessa mesma linha, há os que contestam a política de contenção monetária porque isso afeta os investimentos e o potencial de crescimento da economia. O ex-senador José Serra, do moribundo PSDB, foi por muito tempo um ativo representante daquela ala.

Para a ortodoxia econômica, parece não haver dúvida. Juros altos são o único remédio para combater a inflação e precisam ser acomodados no orçamento público, mesmo que isso requeira cortes em outros tipos de despesas. No Brasil, o impacto dos juros nas contas do governo é extraordinário. Quem acompanha as informações oficiais sabe que há tempos o déficit nominal apurado pelo critério de necessidade de financiamento do setor público (NFSP) tem sido impactado pela taxa de juros praticada pelo BC. Os últimos dados, na posição de final de janeiro deste ano, apontam para um déficit nominal no acumulado de doze meses de 9,06% do PIB, do qual 6,82% referem-se ao peso dos juros na contabilidade do governo.

O déficit primário - uma invenção do FMI que apura a NFSP sem computar os gastos com o financiamento da dívida pública - foi de 2,25% do PIB no acumulado de 12 meses apurado em janeiro passado. É nas contas apuradas pelo conceito primário, alijadas do efeito dos juros que o governo contrata sempre que rola a dívida antiga ou que coloca novos papéis no mercado, que se supõe sejam realizados todos os ajustes necessários para manter o equilíbrio fiscal. Isso implica cortes em gastos correntes (como o pagamento do salário dos servidores públicos), nos investimentos públicos e/ou nas rubricas do orçamento relacionadas com os serviços prestados à sociedade.

O orçamento brasileiro tem despesas rígidas, de um lado, enquanto que o nível da carga tributária e, portanto, da arrecadação, está no limite. Para atrapalhar, a voracidade de deputados e senadores por verba orçamentária tem se revelado inesgotável. Ao fim e ao cabo, só mágica consegue garantir déficit primário perto de zero.

O Banco Central diz que a dívida bruta do governo geral (DBGG) - governo federal mais INSS, Estados e municípios - ficou em 75% do PIB em janeiro. Segundo o BC, foi de 74,3% em fins de dezembro de 2023, abaixo dos 84,6% contabilizados pelo FMI na mesma posição e que agrega ao conceito os títulos do Tesouro Nacional na carteira do BC. A esse nível de mais de 80% do PIB de dívida pública bruta o Brasil se aproxima dos países mais endividados do mundo.

Deve ser ressaltado que, para além do impacto dos juros, o aumento generalizado do endividamento público em todo o mundo ainda reflete o efeito fiscal das políticas de compensação da época da covid-19 e, mais recentemente, os gastos militares relacionados à guerra na Ucrânia e o conflito na Faixa de Gaza. Isso tem afetado especialmente os EUA e os países europeus integrantes da Otan.

O FMI estima que a dívida pública em geral continue a crescer a ponto de equivaler a 120% do PIB, em média, entre os países de economia mais avançada, e a 80% do PIB entre os países chamados “emergentes” e os de economia de renda média, em 2028. O aumento da dívida dos governos - também há expectativa de maior endividamento das famílias e do setor privado - tem sido observado com atenção porque acontece em cenário econômico nada favorável.

Com orçamento rígido e nível da carga tributária no limite, só mágica garante déficit primário perto de zero

Parecem longe os anos em que as taxas de juros reais se mantiveram bem abaixo das taxas de crescimento do PIB, abrindo espaço para maior acomodação fiscal. O prognóstico de ambiente mais hostil encontra ressonância nas previsões do próprio FMI de baixa taxa de expansão do PIB a médio prazo, da ordem de 2% ao ano em média para os países de economia mais avançada e em torno de 3% ao ano para a taxa média mundial, com expansão medíocre da produtividade e problemas demográficos.

Para onde se olha, as previsões são pessimistas. A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne vários países (o Brasil não faz parte), previu recentemente que a dívida dos governos integrantes da organização passível de ser comercializada em mercado deve atingir um novo recorde em 2024, com a cifra de US$ 56 trilhões. Somou US$ 40 trilhões em 2019 e US$ 54 trilhões em 2023. Isso reflete a necessidade dos países de captarem recursos para o enfrentamento de suas despesas, mas não apenas o setor público tem ampliado o endividamento.

O montante de empréstimos brutos contraído em geral pelos participantes da OCDE - público e privado - aumentou de US$ 12,1 trilhões em 2022 para US$ 14,1 trilhões em 2023, enquanto que a projeção para 2024 é de US$ 15,8 trilhões, o maior nível jamais atingido. Do total de empréstimos tomados no ano passado, os Estados Unidos responderam por dois terços, a maior parte na forma de novas contratações.

A situação em geral tem o efeito perverso de colocar em uma camisa de força a capacidade dos governos de atuarem naquilo para o qual são constituídos: a implementação de políticas públicas que promovam o bem-estar da sociedade.

 

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