sexta-feira, 26 de abril de 2024

Maria Cristina Fernandes - A grama mais verde do vizinho

Valor Econômico

Greve nas universidades expõe as desigualdades no serviço público federal e divide professores entre a urgência das reivindicações e o risco de se esvaziar os campi num momento desfavorável da correlação de forças

Luiz-Eduardo Del-Bem tinha 28 anos quando terminou seu doutorado em genética pela Unicamp, em 2013. Seguiu para um pós-doutorado em Harvard no ano seguinte. Em 2018, dois anos depois de voltar ao Brasil, passou num concurso na UFMG. Como professor-adjunto e chefe de departamento, recebe R$ 9,8 mil líquidos. Chefia uma equipe com professores recém-contratados com salário de R$ 7,9 mil líquidos.

Recebe R$ 116 de assistência à saúde suplementar, o que é insuficiente para pagar um plano de saúde, mesmo com o desconto oferecido pelo sindicato. Numa enquete informal que fez por meio do X sobre o tema, colheu 992 respostas e descobriu que está na mesma situação de 30% dos professores universitários.

O custo de importação de um único kit para extração de DNA de solo que usa em suas pesquisas é de US$ 3,5 mil. A publicação de artigo numa revista estrangeira custa, em média, US$ 5 mil. Os financiamentos do CNPq - nunca conseguiu um - vão de R$ 165 mil a R$ 275 mil para projetos de grupos que tenham, no mínimo, de três a cinco doutores com duração de até 36 meses.

Na semana passada, o Ministério da Ciência e Tecnologia liberou o edital do programa de repatriação de talentos. Com um custo total de R$ 1 bilhão, prevê a concessão de uma bolsa para pesquisadores brasileiros (com doutorado) no Brasil de R$ 13 mil líquidos, custeio para compra de equipamentos e manutenção e visitas a centros de excelência no exterior de até R$ 520 mil. Cada pesquisador terá direito a auxílio-alimentação, auxílio-deslocamento e verba para contratação de plano de saúde para a família, além de auxílio-previdência para o recolhimento de contribuição como autônomo.

O programa foi motivado por uma antiga queixa da comunidade científica, a de que o país estava perdendo uma geração de pesquisadores brilhantes atraídos por centros estrangeiros pela ausência de condições de trabalho no Brasil. A reação ao programa exibiu tanto o cobertor curto da verba para ciência no país quanto o fenômeno da “grama sempre mais verde do vizinho” que costuma acompanhar a adoção de políticas públicas. Professores e pesquisadores queixam-se de que há milhares de doutores desempregados no país e que aqueles que estão nas universidades não usufruem das mesmas condições de trabalho.

O Brasil forma 22 mil doutores por ano. Há 300 mil nas universidades. A taxa de reposição é de 10 mil doutores por ano. Então há, de fato, 12 mil sem emprego porque além da inexistência de vagas nas universidades, a taxa de investimento da economia é insuficiente para o setor privado absorvê-los. Por outro lado, há programas do gênero em todo o mundo e a crise pela qual passou a economia brasileira a partir de 2016 dificultou a volta de muitos dos doutores formados no exterior. E, finalmente, as verbas do programa são do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, fundo constitucional gerido pela pasta da Ciência e Tecnologia e não pelo MEC, de onde saem os recursos para o custeio das universidades.

Não foi esta a causa da greve de professores das universidades federais, mas desde o geneticista Del-Bem até a ministra da Gestão, Esther Dweck, reconhece-se que o lançamento do programa do CNPq no momento em que se deflagrava a mobilização acabou dando-lhe mais gás.

Ainda que a defasagem salarial - calculada em 40% pelo Dieese - e as condições de trabalho sejam reivindicações comuns, a paralisação não o é. Até o dia 23 de abril, 28 entidades haviam aprovado greve e 15, rejeitado. Mais do que as condições dos colegas a serem repatriados, o que abespinha os grevistas é o tratamento dado a outras carreiras de servidores federais. Na Polícia Federal, o salário de entrada na carreira é quatro vezes maior do que o dos professores de universidades federais, na Defensoria Pública é mais de três vezes e na Receita e na Advocacia-Geral da União é o dobro.

É comum encontrar professores que façam eco a Del-Bem na cobrança de reciprocidade ao apoio de professores que, majoritariamente, apoiaram a eleição de Lula, enquanto outras categorias não o fizeram e tiveram suas demandas atendidas. O exemplo mais comumente usado é o da PF, que teve 22% de aumento no ano passado enquanto os professores, bem como outras categorias de servidores, receberam 9%.

Houve quem defendesse que o governo segurasse o reajuste dos 9% para o segundo ano, movido pela máxima que é a maldade do primeiro ano que lastreia a bondade dos seguintes, mas a pressão de categorias mais fortes acabou prevalecendo, o que tornou difícil não estender o aumento, ainda que mitigado, também para os professores.

Políticas salariais não são movidas por lealdades, mas por correlação de forças, e não há dúvida de que a dos professores está em desvantagem. Professor titular de filosofia na Universidade Federal da Bahia, Daniel Peres reconhece a justiça das demandas, mas discorda que a greve seja o instrumento para alcançá-las neste momento: “Nosso patrão não é o governo, mas a sociedade. E é ela que temos que chamar para nosso lado". Peres, que, no topo da carreira, recebe R$ 14 mil líquidos, vê nas redes sociais, na imprensa e até em manifestações episódicas meios mais eficientes de ganhar a opinião pública numa conjuntura em que o discurso contra as universidades públicas ainda prospera. Nem mesmo o apoio dos alunos, diz, a greve tem.

Não discorda do foco do governo na educação básica mas da disposição de abrir mais universidades e outros 100 institutos técnicos sem dar condição de funcionamento àqueles que foram criados em governos anteriores do PT e sem proporcionar uma carreira com patamar de entrada mais valorizado.

Teme-se ainda que uma greve demorada aprofunde o esvaziamento provocado por pandemia e crise econômica. Levantamento da associação de docentes da UFRJ, por exemplo, mostrou que 43% dos aprovados na chamada regular do Sistema de Seleção Unificada (Sisu) não se matricularam este ano.

A divisão entre as lideranças dos professores tem sido mal explorada pelo governo. A ala mais radicalizada da greve é liderada pelo Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes), um condomínio do PSTU, PCB e parte do Psol. É de lá que parte o bombardeio contra o ministro Fernando Haddad.

O risco da greve, num momento em que o governo anda no fio da navalha da opinião pública, é que a ligeira vantagem adquirida pelo presidente nas pesquisas se esfacele se setores já críticos às universidades redobrarem a carga com essa paralisação.

Dois dias depois da deflagração da greve, o ministro da Defesa, José Múcio, esteve na Comissão de Defesa da Câmara dos Deputados acompanhado dos três comandantes das Forças Armadas para defender o Orçamento de sua pasta. A senha foi dada pelo comandante do Exército, Tomás Miné Ribeiro Paiva.

“Convido os senhores a entrar em qualquer quartel. Entrem, por exemplo, em um quartel no norte de Minas Gerais, em Montes Claros, ou mesmo no meio da selva. Vão ver a grama cortada e o quartel limpo e arrumado. Vamos entrar numa universidade qualquer para ver como é que está, em termos de manutenção. Quanto se gasta para mantenir (sic) um quartel? Quanto se gasta para mantenir (sic) uma universidade?”

O lapso de francofilia do general, ao tentar usar o verbo “manter”, quase tira o foco do essencial. Tomás Paiva acabara de defender a manutenção das tropas citando o custo de alimentação por militar/dia (R$ 11,65) no Exército quando, para reforçar a defesa do orçamento militar, achou por bem comparar quartéis a universidades.

Legalista, o general tem sido alvo dos golpistas que o antecederam desde que assumiu o comando do Exército, mas usou a lógica do governo passado que desmerecia reivindicações estudantis, criticando as universidades. O ex-ministro da Educação Abraham Weintraub chegou a ser condenado na primeira instância a pagar R$ 40 mil por ter dito que as universidades cultivam maconha e fabricam drogas.

Foi essa hostilidade, além da pandemia, reconhece Del-Bem, que inibiu greves ao longo do governo Bolsonaro. E não apenas nas universidades. A ministra Esther Dweck também vê a ausência de reação de servidores, na gestão passada, como decorrência da política de aumento zero. Como não teve para ninguém, não inflacionou a indignação.

Hoje a política salarial dos servidores federais está cercada por 50 tons de gramados verdes e ameaçada pelas nuvens cinzentas do descontrole da economia se o governo perder o prumo nos gastos. No Banco Central, por exemplo, Esther Dweck enfrenta a resistência de servidores que não aceitam um aumento linear com outras carreiras.

No Congresso, depara-se com a ameaça da PEC do quinquênio, a proposta que dá reajuste automático de 5% a cada cinco anos e foi ampliada do Judiciário para carreiras do Executivo, como AGU, Polícia Federal e Receita. Se aprovada, não apenas teria impacto fiscal gigante, como desencadearia demandas dos demais servidores. No governo Bolsonaro, a grama secou pra todo mundo. É no início da rega que os problemas aparecem.

 

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