Valor Econômico
Greve nas universidades expõe as
desigualdades no serviço público federal e divide professores entre a urgência
das reivindicações e o risco de se esvaziar os campi num momento desfavorável
da correlação de forças
Luiz-Eduardo Del-Bem tinha 28 anos quando
terminou seu doutorado em genética pela Unicamp, em 2013. Seguiu para um
pós-doutorado em Harvard no ano seguinte. Em 2018, dois anos depois de voltar
ao Brasil, passou num concurso na UFMG. Como professor-adjunto e chefe de
departamento, recebe R$ 9,8 mil líquidos. Chefia uma equipe com professores
recém-contratados com salário de R$ 7,9 mil líquidos.
Recebe R$ 116 de assistência à saúde
suplementar, o que é insuficiente para pagar um plano de saúde, mesmo com o
desconto oferecido pelo sindicato. Numa enquete informal que fez por meio do X
sobre o tema, colheu 992 respostas e descobriu que está na mesma situação de
30% dos professores universitários.
O custo de importação de um único kit para extração de DNA de solo que usa em suas pesquisas é de US$ 3,5 mil. A publicação de artigo numa revista estrangeira custa, em média, US$ 5 mil. Os financiamentos do CNPq - nunca conseguiu um - vão de R$ 165 mil a R$ 275 mil para projetos de grupos que tenham, no mínimo, de três a cinco doutores com duração de até 36 meses.
Na semana passada, o Ministério da Ciência e
Tecnologia liberou o edital do programa de repatriação de talentos. Com um
custo total de R$ 1 bilhão, prevê a concessão de uma bolsa para pesquisadores
brasileiros (com doutorado) no Brasil de R$ 13 mil líquidos, custeio para
compra de equipamentos e manutenção e visitas a centros de excelência no
exterior de até R$ 520 mil. Cada pesquisador terá direito a
auxílio-alimentação, auxílio-deslocamento e verba para contratação de plano de
saúde para a família, além de auxílio-previdência para o recolhimento de
contribuição como autônomo.
O programa foi motivado por uma antiga queixa
da comunidade científica, a de que o país estava perdendo uma geração de
pesquisadores brilhantes atraídos por centros estrangeiros pela ausência de
condições de trabalho no Brasil. A reação ao programa exibiu tanto o cobertor
curto da verba para ciência no país quanto o fenômeno da “grama sempre mais
verde do vizinho” que costuma acompanhar a adoção de políticas públicas.
Professores e pesquisadores queixam-se de que há milhares de doutores
desempregados no país e que aqueles que estão nas universidades não usufruem
das mesmas condições de trabalho.
O Brasil forma 22 mil doutores por ano. Há
300 mil nas universidades. A taxa de reposição é de 10 mil doutores por ano.
Então há, de fato, 12 mil sem emprego porque além da inexistência de vagas nas
universidades, a taxa de investimento da economia é insuficiente para o setor
privado absorvê-los. Por outro lado, há programas do gênero em todo o mundo e a
crise pela qual passou a economia brasileira a partir de 2016 dificultou a
volta de muitos dos doutores formados no exterior. E, finalmente, as verbas do
programa são do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico,
fundo constitucional gerido pela pasta da Ciência e Tecnologia e não pelo MEC,
de onde saem os recursos para o custeio das universidades.
Não foi esta a causa da greve de professores
das universidades federais, mas desde o geneticista Del-Bem até a ministra da
Gestão, Esther Dweck, reconhece-se que o lançamento do programa do CNPq no
momento em que se deflagrava a mobilização acabou dando-lhe mais gás.
Ainda que a defasagem salarial - calculada em
40% pelo Dieese - e as condições de trabalho sejam reivindicações comuns, a
paralisação não o é. Até o dia 23 de abril, 28 entidades haviam aprovado greve
e 15, rejeitado. Mais do que as condições dos colegas a serem repatriados, o
que abespinha os grevistas é o tratamento dado a outras carreiras de servidores
federais. Na Polícia Federal, o salário de entrada na carreira é quatro vezes
maior do que o dos professores de universidades federais, na Defensoria Pública
é mais de três vezes e na Receita e na Advocacia-Geral da União é o dobro.
É comum encontrar professores que façam eco a
Del-Bem na cobrança de reciprocidade ao apoio de professores que,
majoritariamente, apoiaram a eleição de Lula, enquanto outras categorias não o
fizeram e tiveram suas demandas atendidas. O exemplo mais comumente usado é o
da PF, que teve 22% de aumento no ano passado enquanto os professores, bem como
outras categorias de servidores, receberam 9%.
Houve quem defendesse que o governo segurasse
o reajuste dos 9% para o segundo ano, movido pela máxima que é a maldade do
primeiro ano que lastreia a bondade dos seguintes, mas a pressão de categorias
mais fortes acabou prevalecendo, o que tornou difícil não estender o aumento,
ainda que mitigado, também para os professores.
Políticas salariais não são movidas por
lealdades, mas por correlação de forças, e não há dúvida de que a dos
professores está em desvantagem. Professor titular de filosofia na Universidade
Federal da Bahia, Daniel Peres reconhece a justiça das demandas, mas discorda
que a greve seja o instrumento para alcançá-las neste momento: “Nosso patrão
não é o governo, mas a sociedade. E é ela que temos que chamar para nosso
lado". Peres, que, no topo da carreira, recebe R$ 14 mil líquidos, vê nas
redes sociais, na imprensa e até em manifestações episódicas meios mais
eficientes de ganhar a opinião pública numa conjuntura em que o discurso contra
as universidades públicas ainda prospera. Nem mesmo o apoio dos alunos, diz, a
greve tem.
Não discorda do foco do governo na educação
básica mas da disposição de abrir mais universidades e outros 100 institutos
técnicos sem dar condição de funcionamento àqueles que foram criados em
governos anteriores do PT e sem proporcionar uma carreira com patamar de
entrada mais valorizado.
Teme-se ainda que uma greve demorada
aprofunde o esvaziamento provocado por pandemia e crise econômica. Levantamento
da associação de docentes da UFRJ, por exemplo, mostrou que 43% dos aprovados
na chamada regular do Sistema de Seleção Unificada (Sisu) não se matricularam
este ano.
A divisão entre as lideranças dos professores
tem sido mal explorada pelo governo. A ala mais radicalizada da greve é
liderada pelo Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino
Superior (Andes), um condomínio do PSTU, PCB e parte do Psol. É de lá que parte
o bombardeio contra o ministro Fernando Haddad.
O risco da greve, num momento em que o
governo anda no fio da navalha da opinião pública, é que a ligeira vantagem
adquirida pelo presidente nas pesquisas se esfacele se setores já críticos às
universidades redobrarem a carga com essa paralisação.
Dois dias depois da deflagração da greve, o
ministro da Defesa, José Múcio, esteve na Comissão de Defesa da Câmara dos
Deputados acompanhado dos três comandantes das Forças Armadas para defender o
Orçamento de sua pasta. A senha foi dada pelo comandante do Exército, Tomás
Miné Ribeiro Paiva.
“Convido os senhores a entrar em qualquer
quartel. Entrem, por exemplo, em um quartel no norte de Minas Gerais, em Montes
Claros, ou mesmo no meio da selva. Vão ver a grama cortada e o quartel limpo e
arrumado. Vamos entrar numa universidade qualquer para ver como é que está, em
termos de manutenção. Quanto se gasta para mantenir (sic) um quartel? Quanto se
gasta para mantenir (sic) uma universidade?”
O lapso de francofilia do general, ao tentar
usar o verbo “manter”, quase tira o foco do essencial. Tomás Paiva acabara de
defender a manutenção das tropas citando o custo de alimentação por militar/dia
(R$ 11,65) no Exército quando, para reforçar a defesa do orçamento militar,
achou por bem comparar quartéis a universidades.
Legalista, o general tem sido alvo dos
golpistas que o antecederam desde que assumiu o comando do Exército, mas usou a
lógica do governo passado que desmerecia reivindicações estudantis, criticando
as universidades. O ex-ministro da Educação Abraham Weintraub chegou a ser
condenado na primeira instância a pagar R$ 40 mil por ter dito que as
universidades cultivam maconha e fabricam drogas.
Foi essa hostilidade, além da pandemia,
reconhece Del-Bem, que inibiu greves ao longo do governo Bolsonaro. E não
apenas nas universidades. A ministra Esther Dweck também vê a ausência de
reação de servidores, na gestão passada, como decorrência da política de
aumento zero. Como não teve para ninguém, não inflacionou a indignação.
Hoje a política salarial dos servidores
federais está cercada por 50 tons de gramados verdes e ameaçada pelas nuvens
cinzentas do descontrole da economia se o governo perder o prumo nos gastos. No
Banco Central, por exemplo, Esther Dweck enfrenta a resistência de servidores
que não aceitam um aumento linear com outras carreiras.
No Congresso, depara-se com a ameaça da PEC
do quinquênio, a proposta que dá reajuste automático de 5% a cada cinco anos e
foi ampliada do Judiciário para carreiras do Executivo, como AGU, Polícia
Federal e Receita. Se aprovada, não apenas teria impacto fiscal gigante, como
desencadearia demandas dos demais servidores. No governo Bolsonaro, a grama
secou pra todo mundo. É no início da rega que os problemas aparecem.
2 comentários:
Excelente! Muito bem argumentado!
Verdade.
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