terça-feira, 23 de abril de 2024

Míriam Leitão - Relatos do Vale do Javari

O Globo

Novas e antigas lideranças indígenas denunciam que a região continua sendo invadida e correndo perigo

O Vale do Javari continua correndo riscos, há cada vez mais invasões e, mesmo tendo mudado o governo, os invasores continuam entrando. Esse é o recado de lideranças velhas e novas de várias etnias. Por quatro horas estive numa roda de conversa entre gerações dos povos do Vale. “Nós mesmos estamos tendo que fiscalizar nossas terras”, disse o cacique Waki Kaissuma Mayoruna. “O indígena tem que prender o caçador, a polícia disse que não é para prender, mas ela não prende”, disse com a ajuda de um tradutor. Waki Kaissuma, uma das lideranças mais fortes do Vale, mora na fronteira binacional com o Peru.

Logo que cheguei à tenda onde haveria o encontro, no meio do Acampamento Terra Livre, alguém me disse. “Um momento raro, um Korubo falando.” De recente contato, com uma parte do povo ainda em isolamento, os Korubo nunca se separam de uma enorme borduna. E é com o instrumento apoiado no chão que o líder Txitxampi Korubo fala da necessidade de proteção do seu território.

O cacique Txamã Matis falou, também em sua língua, e apontou vários outros guerreiros ao lado dele, entre eles o Korubo. Um dos seus filhos traduz. Diz que ele está falando que está velho já e que os guerreiros que ele mostrou são da equipe que está trabalhando na vigilância do território. Os Matis e Korubo já foram inimigos, agora lutam lado a lado.

As lideranças foram se sucedendo, em falas fortes e lembranças de outros tempos. O “tempo do Sydney”, referindo-se ao Sydney Possuelo, que estava no encontro, ou do tempo da demarcação. Estava lá também Walter Coutinho, o perito da demarcação, um trabalho que levou anos e terminou no governo Fernando Henrique. Começou em 1985 e empacou. Com a nova Constituição ganhou força, mas só terminou em 2001. A história era lembrada pelos indigenistas, ou pelos líderes como Ivan Arapá. Dhani Kanamari explicou a situação atual.

— Os invasores não param em toda a nossa calha do rio, como Mayoruna, Matis, Kanamari, Kulina, todos têm invasores. A Feliciana que está aqui foi atacada. Ela vinha descendo o rio e encontrou invasores levando toneladas de bichos de cascos. Eles ofereceram a ela, mas ela não aceitou e foi ameaçada com arma na cabeça e o governo brasileiro não tomou providência de nada. Os garimpos estão entrando no Jarinal ( fica no rio Jutaí, no limite sudeste da TI).

O jovem líder Tamakuni Kanamari disse que tinha algo a perguntar aos jornalistas convidados para o encontro. Sonia Bridi, Rubens Valente e eu.

— Ô imprensa explica aí, porque a gente denuncia, denuncia e o governo não faz nada. A Polícia não faz nada. Os bandidos têm fuzil, helicóptero e nós jovens, as mulheres, estamos fazendo vigilância com o quê?

Outro jovem, João Filho Kanamari conta que criaram uma associação e trabalham para implantar o manejo do pirarucu no médio rio Javari.

—Nós, indígenas, somos a verdadeira Funai. Nossos avós morreram ali, nós jovens vamos defender o território. O dinheiro não é importante para a nossa vida, mas a terra é. Queremos implantar o manejo do pirarucu para ter a nossa economia e ter uma abundância de peixe, não escassez.

Abraão Mayoruna, jovem que foi aluno de Beatriz de Almeida Matos, viúva de Bruno Pereira, falou com desenvoltura e eloquência.

— Acreditamos que a floresta é vida para a gente, saúde. A nossa geração está viva porque nossos pais lutaram, nossos avós construíram a base, mas a gente corre riscos todos os dias.

Jorge Marubo, uma liderança já mais madura, disse que os garimpeiros estão chegando e em alguns anos os povos do Vale estarão na mesma situação do povo Yanomami. Afirmou que estão com dificuldade para cobrar do atual governo porque lá estão “os nossos parentes” na Funai e no Ministério dos Povos Indígenas.

Logo em seguida falou Beatriz, que hoje exerce o cargo de diretora do departamento de povos indígenas isolados da Funai.

— Foi essa história que me levou lá, foi a luta de vocês que me colocou lá. Precisamos fortalecer a Funai.

Foi uma tarde de visita a um Brasil profundo e forte. Patricia Mayoruna é uma das quatro mulheres que fazem parte do Equipe de Vigilância da Univaja.

— Me disseram que porque eu sou mulher eu não ia conseguir fazer esse trabalho. Foi difícil, mas eu consegui.

Patricia andou 100 quilômetros, durante 60 dias para o trabalho de reavivar os marcos da demarcação da TI Vale do Javari, a segunda maior terra indígena do país.


Um comentário: