É um erro atrasar aprovação do PL das Redes Sociais
O Globo
Ao criar grupo para rediscutir texto pronto,
Lira atende aos interesses de quem quer que tudo fique como está
Ao mesmo tempo que criaram uma nova praça pública, as redes sociais agravaram velhos problemas. Serviram de trampolim para violação de privacidade, golpes de todo tipo, exploração sexual de menores, bullying, racismo, neonazismo e outros crimes de ódio, fomentaram vícios, abusos, ameaças, problemas de saúde mental, intolerância política e religiosa, circulação de desinformação. Diante da incapacidade reiterada das grandes plataformas digitais de resolver os problemas que criaram, a União Europeia adotou leis para que ao menos assumam responsabilidades pelos crimes cometidos nelas ou por meio delas. O objetivo é criar um ambiente de transparência, com mecanismos sensatos de vigilância e punição.
O principal é atribuir às plataformas o
“dever de cuidado” pelo que fazem circular. Trata-se de um incentivo à atuação
diligente para que previnam ou mitiguem conteúdos ilegais ou que tragam riscos
— como conspirações criminosas, ameaças à saúde pública ou auxílio a suicídio —
sem que seja necessária a ação da Justiça a todo momento. O Brasil esteve a um
passo de seguir o mesmo caminho.
Depois de longo debate, o Projeto de Lei (PL)
de Regulação das Redes Sociais, aprovado pelos senadores, estava maduro na
Câmara no início do ano passado. A última versão do relator, deputado Orlando
Silva (PCdoB-SP), prevê a responsabilização de empresas digitais por conteúdos
criminosos publicados por usuários, desde que comprovada negligência. Também
estabelece prazos para cumprimento de decisões judiciais, promove transparência
nas decisões e dá aos afetados pelas decisões o direito de contestá-las. Para
evitar censura arbitrária, atribui às próprias plataformas a formulação de
regras e da estrutura de governança necessária para fazê-las cumprir. O texto
alcança um equilíbrio virtuoso entre as necessidades de proteger a livre
expressão e de coibir abusos.
Por isso é incompreensível a decisão do
presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), de abandoná-lo depois da crise
entre Elon Musk,
dono da plataforma X (ex-Twitter),
e o Supremo Tribunal Federal. Não se podem confundir as decisões controversas
da Corte com a necessidade imperativa e urgente de regular as redes. E, se há
um foro com legitimidade para isso, é o Congresso.
Os argumentos usados para criticar o PL das
Redes Sociais não param de pé. Seus opositores confundem propositalmente seu
objetivo. Acusam-no de promover censura, quando o texto não impõe nenhuma
restrição à liberdade de expressão além das já previstas em lei há décadas.
Decisões duras da Justiça ao suspender contas e posts surgem num vácuo
jurídico. Falta uma lei atribuindo às plataformas o dever de zelar pelo
conteúdo. É disso que se trata.
Nenhuma das previsões apocalípticas feitas
antes da aprovação da legislação europeia, em que o texto de Silva se espelha,
se confirmou. Lira anunciou a criação de um grupo de trabalho para debater a
questão. Na prática, isso atende apenas aos interesses das plataformas, que
preferem deixar tudo como está. A Câmara deve acelerar a aprovação do PL. É
irrealista exigir que as autoridades deem conta de coibir abusos no meio
digital sem que as plataformas passem a agir de forma diferente. A atenção para
evitar excessos da legislação é legítima e necessária, mas não pode servir de
escudo para preservar as redes como paraíso de bandidos, golpistas, racistas e
caluniadores.
Brasil modernizou costumes e abriu mais
espaço para as mulheres
O Globo
Pesquisa do IBGE constatou conquistas
expressivas em campos como casamento e guarda dos filhos
A sociedade brasileira desenhada pela
pesquisa Estatísticas do Registro Civil, do IBGE,
está em sintonia com a evolução comportamental em curso no mundo todo,
inclusive em países em estágio mais avançado de desenvolvimento. Desde os anos
1970, quando a pesquisa começou a ser feita, cai o número de nascimentos,
reduzindo a taxa de crescimento populacional, tendência generalizada no
planeta. A população tende a envelhecer e, dentro desse novo quadro, as
mudanças comportamentais se consolidam.
A mudança para melhor no lugar da mulher na
sociedade brasileira é um dos destaques da pesquisa. Nos últimos anos houve
queda expressiva na proporção de jovens que se tornaram mães com 20 anos ou
menos. Em 2000, elas eram 21% das mães que registraram seus filhos. Dez anos
depois, a proporção caíra para 18,5%. Há dois anos, estava em apenas 12%.
A explicação mais óbvia para a queda é o
avanço da educação formal das mulheres, movidas por outras aspirações além da
maternidade, em especial no campo profissional. Talvez por isso, a idade das
mães esteja em alta. Há 23 anos a faixa etária entre 20 e 29 anos representava
54,5% do total. Em 2022 o peso dessa faixa caíra para 49%. Ao mesmo tempo, a
proporção de mães com mais de 30 anos subiu para 34,5%. O segmento de 40 anos
ou mais dobrou de 2% para 4% em pouco mais de uma década.
Outra tendência verificada em 2022 foi a
retomada dos casamentos, depois de um período de queda associado à pandemia.
Desta vez, os casais são mais velhos. Em 2010, os noivos tinham em média 29
anos e as noivas 26. Passados 12 anos, os homens casavam em média com 31 anos e
as mulheres com 29. O enlace de casais mais maduros costuma evitar dificuldades
no relacionamento, comuns quando casais mais jovens passam a morar sob o mesmo
teto.
Mesmo assim, as separações se tornaram mais
frequentes. Em 2022 o total ficou quase 9% acima de 2021. Os divórcios com dez
anos ou menos de união passaram, entre 2010 e 2022, de 37,4% para 47,7% do
total. Está nesta faixa a maioria das separações. Em nenhuma região do país,
mesmo nas que possam ser consideradas mais conservadoras, houve queda nas
separações.
A guarda dos filhos menores depois do
divórcio costuma ser motivo de desentendimento. De 2014 a 2022, porém, cresceu
a proporção da guarda compartilhada (de 7,5% para 37,8%), a solução mais
equilibrada que reflete o amadurecimento da sociedade. Há dez anos, o encargo
dos filhos, em 85,1% das separações, ficava exclusivamente com a mãe.
O Brasil em seu caminho inexorável de
transformação numa sociedade urbana, apesar de todas as disparidades, amplia o
conceito de família, incluindo as formadas por casais do mesmo sexo, e abre
mais espaço para as mulheres. A modernização dos costumes deve ser celebrada.
Censura promovida por Moraes tem de acabar
Folha de S. Paulo
Impedir alguém de se expressar nas redes
sociais viola Constituição; puna-se o que for dito, após devido processo legal
A Constituição,
no nobilíssimo artigo dos direitos fundamentais, dispõe ser "livre a
expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação,
independentemente de censura ou licença".
Como se o comando fosse insuficiente, a Carta
o reforça no capítulo em que trata da comunicação social, ao vedar qualquer
tipo de restrição à manifestação do pensamento, à criação, à expressão e à
informação. O ordenamento, em suma, impede o Estado de calar um cidadão sob
qualquer pretexto.
A ampla liberdade, no Brasil como no cânone
democrático, caminha ao lado da responsabilidade individual. Uma pessoa pode
dizer o que quiser sem ser amordaçada, mas estará sujeita a sanções penais caso
o seu discurso configure crime, ou pecuniárias se conspurcar a imagem de
alguém.
Quaisquer intervenções repressivas do poder
público, portanto, deveriam sobrevir somente após algo ser expresso, nunca
antes.
Pois um ministro do Supremo Tribunal Federal,
com decisões
solitárias em inquéritos anômalos —conduzidos pelo magistrado e
não pelo Ministério
Público, o órgão competente—, reinstituiu a censura prévia no
Brasil. Ordens secretas de Alexandre de
Moraes proíbem cidadãos de se expressarem em redes sociais.
O secretismo dessas decisões impede a
sociedade de escrutinar a leitura muito particular do texto constitucional que
as embasa. Nem sequer aos advogados dos banidos é facultado acesso aos éditos
do Grande Censor. As contas se apagam sem o exercício do contraditório nem
razão conhecida.
Urgências
eleitorais poderiam eventualmente justificar medidas extremas como
essas. O pleito de 2022 transcorreu sob o tacão de um movimento subversivo
incentivado pelo presidente da República. Alguns de seus acólitos nas redes não
pensariam duas vezes antes de exercitar o golpismo.
Mas a eleição acabou faz mais de 17 meses e
seu resultado foi, como de hábito no Brasil, rigorosamente respeitado. O rufião
que perdeu nas urnas está fora do governo e, como os vândalos que atacaram as
sedes dos três Poderes em 8 de janeiro de 2023, vai responder pela sua
irresponsabilidade.
Escapa qual seja o motivo para sustentar os
silenciamentos, que violam um direito fundamental. Alexandre de Moraes tem, no
mínimo, o dever de publicar todas as decisões que o levaram a exercer esse
poder extraordinário.
Melhor mesmo seria que suspendesse as
proibições. É um direito inalienável dos imbecis do bolsonarismo propagar as
suas asneiras. Expostas à luz do sol, elas tendem a desidratar-se. Silenciadas,
apenas alimentam o vitimismo hipócrita dessa franja de lunáticos.
Puna-se o que houver de crime no que for
dito, mas sem recorrer ao instrumento inconstitucional e autoritário da censura
prévia.
Limites à polícia
Folha de S. Paulo
STF impõe critérios para diminuir
arbitrariedade em ações de forças de segurança
Em duas decisões proferidas na última quinta
(11), o Supremo Tribunal Federal reafirmou o óbvio: no Estado democrático de
Direito, há limites para a atuação policial.
A corte definiu que o poder público deve ser
responsabilizado civilmente por morte ou ferimento de cidadãos em operações de
segurança e quais critérios não justificam abordagens feitas por agentes.
A letalidade policial no Brasil é notória e
vergonhosa. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 6.430 pessoas
foram mortas por forças de segurança em 2022. São 18 mortes por dia.
Para se ter ideia da dimensão, no mesmo ano
foram 1.176 óbitos nos EUA, sendo que lá há 130 milhões de habitantes a mais do
que aqui.
Há também as vítimas das balas perdidas.
Entre 2007 e agosto de 2023, foram 101 crianças mortas por disparos oriundos de
operações policiais ou disputas entre facções criminosas no estado do Rio,
segundo dados da ONG Rio da Paz.
Em relação a essas mortes, o STF determinou
que perícias inconclusivas sobre a origem do disparo fatal —principal entrave
para o ressarcimento da população afetada— não são mais
um óbice para atestar a responsabilidade civil do Estado de
indenizar as vítimas.
No outro julgamento, o Supremo proibiu
abordagem policial motivada por critérios não objetivos, como raça,
sexo ou aparência física.
O Código de Processo Penal exige a chamada
fundada suspeita para que cidadãos sejam revistados. No entanto, como a lei não
estipula com exatidão esse preceito, os policiais acabam decidindo o que seria
um comportamento duvidoso, o que pode dar margem a preconceitos, notadamente o
racial.
As decisões representam avanços. Contudo
deve-se cuidar para que não sirvam apenas para a responsabilização do Estado,
no caso de operações letais, ou anulação de processos, no caso da abordagem.
Tais medidas precisam ser internalizadas por agentes e autoridades para diminuir o número de vítimas da arbitrariedade e da brutalidade das forças de segurança.
A legítima crítica ao Supremo
O Estado de S. Paulo
No seu transe salvacionista, o STF vê
extremistas por toda parte, mas nem sempre a crítica é golpismo; ao contrário,
há razões genuinamente democráticas para questionar o Supremo
Ao contrário do que parecem pensar alguns
ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), criticar instituições democráticas
não é necessariamente atacá-las ou ameaçá-las. Tampouco exigir sua
autocontenção é ser extremista, e demandar que atuem conforme a lei não é
deslegitimá-las. Ao contrário, quem faz tudo isso de boa-fé quer
aperfeiçoá-las, isto é, quer instituições que não sejam ativistas, partidárias,
arbitrárias, corporativistas ou pessoais.
Pode parecer ocioso dizer que o debate
público num ambiente genuinamente democrático presume total liberdade para
questionar o poder, mas nos tempos que correm, em que as críticas aos exageros
do STF são tomadas como atentados ao Estado Democrático de Direito, é o caso de
relembrar que a opinião não pode ser criminalizada.
É evidente que os liberticidas
instrumentalizam a liberdade de opinião para propósitos indisfarçavelmente
antidemocráticos. Quando um Jair Bolsonaro fala em “liberdade”, obviamente não
é a liberdade no sentido liberal democrático, que garante a todos, indistintamente,
o direito de questionar o Estado e suas instituições a qualquer tempo, e sim a
“liberdade” de desmoralizar os pilares dessas instituições porque estas são um
obstáculo para seus projetos autoritários de poder. Quando Bolsonaro invocava a
liberdade de expressão para deliberadamente desacreditar o sistema de votação
para presidente, a intenção evidente era atacar a alma da democracia, isto é, a
ideia de que numa eleição comprovadamente limpa e justa os derrotados aceitam o
resultado, reconhecendo a legitimidade do vencedor e de todas as instituições
que corroboraram a vitória.
Do mesmo modo, não cabe ingenuidade a
propósito das acusações do empresário Elon Musk a respeito de supostas
arbitrariedades cometidas pelo Supremo contra sua rede social, o X (antigo
Twitter), e seus usuários. Alinhado a extremistas de direita mundo afora, Musk
se apresenta como um “absolutista da liberdade de expressão”, mas isso só vale
quando lhe interessa – basta lembrar que ele condescendeu à exigência da
ditadura turca de suspender perfis e tolera em sua rede perfis falsos a serviço
da propaganda do governo chinês, com quem tem vultosos negócios. Suas
contradições, contudo, não importam nem um pouco para a tropa bolsonarista, que
o elevou à categoria de “mito da nossa liberdade”, nas palavras de Bolsonaro.
Essa algaravia bolsonarista, que é de fato
golpista e antidemocrática, tem sido usada pelos mais loquazes ministros do
Supremo como prova de uma alegada ameaça permanente e generalizada à
democracia, justificando dessa forma medidas juridicamente exóticas, quando não
inteiramente desprovidas de base legal, para conter essa ameaça. Num ambiente
assim, qualquer opinião mais contundente em relação ao Supremo é logo
caracterizada como “bolsonarista” e, por conseguinte, “golpista”.
É o caso, portanto, de insistir que nem toda
crítica ao Supremo tem, subjacente, a intenção de destruir a democracia. Exigir
que o Supremo seja mais claro a respeito dos parâmetros que adota para as
medidas drásticas que tem tomado em sua missão autoatribuída de salvar a
democracia brasileira não é, nem de longe, minar sua legitimidade. Ao
contrário, é constranger o Supremo a seguir o que vai na Constituição, como se
isso já não fosse sua obrigação precípua, justamente por ser o guardião do
texto constitucional.
Portanto, quem tem minado a legitimidade do
Supremo é o próprio Supremo, quando atropela sua própria jurisprudência, atua
de modo claramente político, colabora para a insegurança jurídica e imiscui-se
em questões próprias do Legislativo.
O Brasil testemunhou um surto de golpismo no
8 de Janeiro, mas hoje as instituições estão, como se diz, funcionando: o
governo está governando; o Legislativo, legislando; e a imprensa, publicando;
enquanto a polícia está nas ruas e o Exército, nos quartéis. Por que o Supremo
segue em mobilização permanente, como se o País vivesse num 8 de Janeiro
interminável? São questões legítimas, que nada têm de extremismo. Demandar a
contenção do Supremo não é ser golpista, é só ser republicano.
Opulência e miséria amazônicas
O Estado de S. Paulo
Nunca se falou tanto da Amazônia, mas ela só
será de fato protegida e valorizada quando o País conhecê-la melhor e garantir
progresso também para a população que vive nela
Pela urgência climática ou por oportunismo,
por um eventual despertar ambiental ou simplesmente modismo, é provável que
nunca na história do Brasil se tenha ouvido tanto falar da Amazônia – mas é
espantoso o quanto a expansão do debate sobre a maior floresta tropical do
planeta parece inversamente proporcional ao conhecimento sobre sua realidade.
Esse paradoxo é reafirmado diante da série de reportagens Êxodo na Amazônia,
publicada pelo Estadão em 7 de abril e, antes, em três capítulos na versão
online. Os repórteres Vinícius Valfré e Wilton Junior percorreram 3 mil
quilômetros e descreveram como a violência e a escassez empurram brasileiros
para longe da floresta; como o êxodo na floresta agrava a favelização em Manaus
e abre brechas para o tráfico e a milícia; e como indígenas dividem rotas
fluviais com invasores e traficantes de drogas e armas em viagens de busca por
assistência. Tem-se ali uma porção do País incrivelmente conhecida e ao mesmo
tempo terrivelmente ignorada.
Essa dissonância demonstra o que deveria ser
uma cláusula pétrea nacional, aquela segundo a qual não há riqueza natural ou
desenvolvimento de uma região sem existência de progresso real para a sua
população. Tampouco há pleno mérito na ampliação do debate sobre a Floresta
Amazônica sem que se cumpram requisitos mínimos de dignidade para quem vive
nela. Símbolo dos superlativos, ela é também a representação do quanto nos
resignamos a conviver com profundas disparidades. A opulência amazônica,
afinal, é também a miséria amazônica. O grande potencial da biodiversidade
brasileira é também o espaço de pobreza, do perigo e da escassez de toda sorte.
No balanço entre perdas e ganhos, como se viu nas reportagens, o saldo é
desolador.
Tais problemas não são obra do acaso. Vêm da
Marcha para o Oeste, política de ocupação implementada por Getulio Vargas na
década de 1940; da fórmula criada durante o governo Café Filho (1955) para
atrair a imigração europeia à “terra sem gente” que o Brasil representava – a
Região Norte em especial; do projeto de integração nacional do regime militar,
nos anos 1960 e 1970, para a ocupação dos vazios demográficos da Amazônia; até
os problemas ambientais intensificados nas duas décadas seguintes. Esses modelos
ignoraram que o desenvolvimento exigia tanto a proteção e a sustentabilidade da
floresta como a produção de riquezas, renda, emprego e alimentos para as
populações locais.
A situação agravou-se com Jair Bolsonaro e
sua política de terra arrasada na área ambiental, que enxergava as árvores como
seus inimigos. Já Lula da Silva, com sua persona camaleônica, trafega entre a
tentativa de se exibir como protetor da floresta e o histórico de quem nunca se
entusiasmou de fato com o meio ambiente. Em 2010, convém lembrar, Lula
entretinha plateias contando a história da perereca impertinente que atrasava
obras. “Não podemos parar tudo por causa de uma perereca”, dizia ele, provocando
gargalhadas enquanto criticava órgãos de proteção ambiental.
“Nacionalizar a Amazônia e amazonizar o
mundo” foi o lema concebido pelo Grupo de Trabalho Amazônico, rede de
organizações criada no marco da Rio-92, a Conferência das Nações Unidas sobre
Meio Ambiente e Desenvolvimento. Nacionalizar tinha e tem um bom sentido: fazer
o restante do Brasil despertar para o bioma, compreender suas realidades,
carências e potencialidades, deixar de ver a floresta a partir de imagens
extremas. São duas visões radicalmente diferentes em nosso imaginário: uma
enxerga a floresta como inferno; a outra, como paraíso.
Conhecer de fato a Amazônia pode ajudar não
só a escapar dessa dicotomia, como deflagrar um modelo de desenvolvimento que
concilie a valorização da floresta em pé com possibilidades econômicas reais
para a região. Só assim o País deixará de vê-la como um ônus de conflitos e
desmates que afetam o clima do planeta para concentrar-se no bônus de uma
riqueza natural relevante para o planeta, mas capaz de garantir condições
básicas para os povos da floresta e das cidades amazônicas.
Vem aí outro penduricalho adquirido
O Estado de S. Paulo
Senadores querem constitucionalizar mais um
privilégio para juízes e procuradores
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e
seu antecessor, Davi Alcolumbre, manobram para constitucionalizar mais um
privilégio para juízes e procuradores: um adicional automático de 5% ao salário
a cada cinco anos. A PEC do Quinquênio é uma iniciativa ultrajante do Congresso
cultivada por decisões ultrajantes do Judiciário.
Os proponentes alegam que não faz sentido um
servidor no final de carreira receber quase o mesmo que um iniciante, que é
preciso atrair talentos e que não haverá impacto fiscal porque a PEC está
“associada” ao projeto de lei que barra supersalários além do teto. É sempre o
mesmo estratagema: diagnosticamse seletivamente distorções para propor remédios
que consolidam mais privilégios e ampliam a distorção sistêmica.
Não faz sentido salários similares no início
e no fim de carreira. Mas a distorção na Justiça não é uma renda baixa no fim,
e sim uma renda alta no começo. Justo e racional seria reduzir a remuneração
inicial e condicionar a progressão à produtividade e mérito.
A carreira pública precisa ser atrativa.
Muitos servidores da base e alguns do primeiro escalão são mal remunerados. Na
média, contudo, os servidores federais recebem quase 70% acima de seus pares na
iniciativa privada. Juízes e promotores já são campeões em renda, auxílios e
privilégios e estão confortavelmente instalados até o último dia de suas vidas
no 0,1% do topo da pirâmide social, com risco zero de deslizar. Num dos países
mais desiguais do mundo, se já há desigualdade entre o setor público e o privado,
a desigualdade dentro do público é maior, e a concentração de renda por suas
elites é o que impede tantos na base de receber melhor.
Pacheco alega que haverá economia, porque o
quinquênio “está associado” ao projeto para barrar os supersalários. Mas nada
garante esta conexão entre alhos e bugalhos. Se se chega ao absurdo de ter de
fazer uma lei para garantir que a lei constitucional do teto seja cumprida, é
só porque esse limite é burlado dia sim e outro também, sobretudo pelo
Judiciário. O quinquênio, por exemplo, foi sepultado em 2005, mas à base de
canetadas casuísticas da Justiça foi exumado em 2022, e está sendo pago
retroativamente. A probabilidade é que o projeto de contenção de supersalários
fique numa gaveta e o quinquênio vá para a Constituição. O trigo aos juízes, o
joio ao contribuinte. Imoral no conteúdo, essa partilha é viciosa na forma: faz
sentido fixar mais uma regalia corporativa numa Constituição já
irremediavelmente prolixa?
Ao assumir a presidência do Judiciário, Luís Roberto Barroso desfiou uma “agenda para o Brasil” trazendo de tudo um pouco, do saneamento à educação, da ciência à habitação popular, com destaque para a “inclusão social” e a “luta contra as desigualdades”. É de seus representantes eleitos que o cidadão espera esses progressos. Ao Judiciário basta garantir a sua legalidade. Mas os juízes poderiam fazer muito para reparar a máquina de gerar desigualdades que é o funcionalismo público. Poderiam, se o principal combustível desta máquina não fosse o seu apetite patrimonialista.
O risco político na América Latina
Correio Braziliense
O passado recente da América Latina, que sempre flertou com o autoritarismo, mais do que justifica as preocupações do capital estrangeiro, que vê enorme potencial econômico na região
A complexidade do mundo atual requer a
combinação de muito sangue-frio e bom senso das autoridades políticas,
predicados cada vez mais escassos. Diante de uma polarização crescente, as
ondas de turbulências têm minado a democracia e colocado em risco muitas das
conquistas sociais obtidas a duras penas nas últimas duas décadas. A
instabilidade é marcante, sobretudo na América Latina, em que direita e
esquerda recorrem a excessos, minando a confiança do capital tão necessário
para o crescimento econômico da região.
O sinal mais evidente da preocupação com os
riscos políticos na América Latina veio do empresariado espanhol. Oito em cada
10 companhias que têm negócios na região apontam a possibilidade de implosão da
democracia como a maior ameaça a ser enfrentada neste ano. A Espanha é a
principal emissora de recursos para o grosso dos países latinos — no Brasil, em
termos de estoque, fica atrás apenas dos Estados Unidos. As empresas ressaltam,
ainda, que já faturam mais com as filiais latinas do que no país onde têm as
suas sedes.
O sobressalto dos investidores é constante,
quando deveria prevalecer a previsibilidade necessária para a ampliação das
fábricas e dos empregos. O caso mais alarmante neste momento envolve o México,
segunda economia latina, e o Equador. Por determinação do presidente
equatoriano, Daniel Noboa, de extrema direita, policiais invadiram a sede da
embaixada mexicana em Quito para prender um opositor político. Tal violação —
um precedente gravíssimo — fere um acordo global de que o território
diplomático é neutro. O temor é de que a porta tenha sido arrombada.
Na Venezuela, acreditava-se que o acordo
fechado em Barbados, com o apoio do Brasil, seria uma garantia de eleições
livres e confiáveis em 28 de julho próximo. Contudo, a realidade se impôs, e a
ditadura comandada por Nicolás Maduro não só impediu que candidatos da oposição
se registrassem para o pleito, como ampliou a perseguição a adversários,
inclusive, com prisões, e expulsou do país funcionários da área de direitos
humanos da Organização das Nações Unidas (ONU). Não satisfeito, Maduro editou
um decreto criando o estado de Essequibo, reforçando a disputa pela região que
pertence à Guiana e é riquíssima em petróleo.
O Brasil, onde a polarização política é mais
acentuada, o temor é de que a ultradireita consiga voltar ao poder apoiada por
uma fábrica de mentiras que sustenta pesados ataques às instituições
democráticas. Há, entre os investidores, o reconhecimento de que o poder
constituído conseguiu manter as rédeas ao conter os movimentos golpistas que
atacaram o coração da República em 8 de janeiro de 2023. Mas a visão é de que a
instabilidade no país é grande. Esse é também o pensamento em relação à
Colômbia, em que o governo de Gustavo Petro perdeu a capacidade de negociação
com a ala mais radical das Forças Armadas Revolucionárias, as Farcs.
No Peru, a presidente Dina Boluarte viu o seu
apoio desabar depois de a casa dela ter sido alvo de buscas e apreensões por
causa de uma coleção de relógios caríssimos, como Rolex, que ela diz serem
todos emprestados. O Congresso já alimenta a possibilidade de um impeachment
contra a política. Na Nicarágua, o ditador Daniel Ortega tem promovido uma caça
a católicos e conduzido uma matança de opositores. Chile e Argentina, que estão
em dois extremos dos espectros políticos, são grandes incógnitas e se debatem
em meio a dificuldades econômicas.
O passado recente da América Latina, que
sempre flertou com o autoritarismo, mais do que justifica as preocupações do
capital estrangeiro, que vê enorme potencial econômico na região. A maior parte
dos investidores ainda acredita que, apesar de todas as ameaças que rondam os
países, a sociedade organizada terá condições de manter as rédeas sob controle
e evitar que, mais uma vez, a fatura dos erros recaia sobre os mais pobres —
sempre eles.
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