sábado, 6 de abril de 2024

Oscar Vilhena Vieira - Jurisprudência flutuante

Folha de S. Paulo

Num ambiente polarizado, disputa entre Congresso e Supremo não é ingênua

No Estado de Direito, os réus não escolhem os juízes que irão julgá-los, nem os juízes podem escolher os réus que irão julgar. Para evitar privilégios e arbitrariedades, o "juiz natural" deve estar previamente estabelecido pela Constituição ou pela lei.

Na última semana, assistimos a um novo episódio da interminável batalha dos Poderes, agora em torno da definição do chamado foro por prerrogativa de função. A extrema direita, implicada na tentativa de golpe, resgatou uma antiga PEC com o objetivo de esvaziar a competência do Supremo Tribunal Federal para julgar os membros do Parlamento.

Na trincheira oposta, ministros do Supremo aproveitaram o julgamento de um habeas corpus em favor de um senador acusado da prática de rachadinha para revisitar uma decisão tomada pelo Supremo, em 2018, que estabelecia critérios para o exercício da jurisdição especial por parte do tribunal.

Em um ambiente de forte polarização entre o Congresso e o Supremo, não se trata de uma disputa ingênua, até porque não são poucos os senadores dispostos a dar início a um processo de impeachment de ministros do Supremo para saciar a sede de vingança de eleitores mais radicalizados.

Gostemos ou não da existência de foro especial para determinadas autoridades, essa foi uma opção tomada pelo nosso sistema constitucional desde sua origem. A justificativa republicana canônica foi oferecida por Victor Nunes Leal, para quem a jurisdição especial não deveria servir para proteger o "interesse pessoal do ocupante do cargo", mas sim para favorecer o "bom exercício da função pública", ou seja, a independência do mandato.

Mais do que isso, argumentava o jurista que, ao se atribuir a um órgão colegiado a responsabilidade para julgar pessoas poderosas, as Constituições buscavam evitar que essas pessoas pudessem constranger um juiz singular. Trata-se, portanto, de "uma garantia bilateral". De um lado, protege o mandato, de outro, a independência judicial.

O fato é que a Constituição de 1988 tratou do foro por prerrogativa de função de maneira bastante sintética, deixando espaço para conflitos interpretativos na definição dos seus contornos. As principais controvérsias giram em torno de quais crimes praticados por mandatários merecem ser objeto do foro especial e de inúmeras questões de natureza temporal: os crimes praticados antes do início dos mandatos devem ser objeto do foro especial? Os processos iniciados na jurisdição especial devem ser enviados à primeira instância após o termino ou interrupção dos mandatos?

Em 2018, o Supremo aprovou proposta do ministro Barroso definindo que: a) a jurisdição especial aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o mandato e a ele relacionados; b) os processos deveriam ser enviados às instâncias inferiores com o término ou interrupção dos mandatos, salvo quando a instrução já estivesse adiantada. Foi uma demonstração de autocontenção por parte do Supremo.

A proposta neste momento em debate no Supremo tem por objetivo dar um passo atrás, restringindo ainda mais a possibilidade de desembarque daqueles que estejam ou venham a ser processados criminalmente no Supremo. Esse movimento de fortalecimento do foro por prerrogativa de função deixou em pânico parlamentares golpistas, milicianos e simpatizantes, daí a retaliação veiculada pela PEC.

Independentemente da necessidade da calibração da regra para evitar impunidade, é fundamental que o Supremo compreenda que a constante flutuação de sua jurisprudência tem ampliado a desconfiança da opinião pública no tribunal. A legitimidade do tribunal depende, sobretudo, de sua capacidade de demonstrar que aplica de forma imparcial e consistente regras previamente estabelecidas.

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