O Globo
Está mais do que na hora de baixar a fervura
e lembrar que, do outro lado, também existem pessoas de boa-fé. Essa
intolerância toda não apenas fratura o país, também nos deixa cegos e surdos
Na véspera da Páscoa, o Movimento dos
Trabalhadores Sem Teto (MTST) publicou uma imagem no perfil do grupo no
Instagram. Nela, Jesus aparece crucificado enquanto três soldados romanos olham
para a cruz e comentam: “Bandido bom é bandido morto”. A publicação gerou uma
ruidosa controvérsia na internet, com a direita acusando o MTST de chamar Jesus
de bandido. O conflito de interpretação na base da celeuma lembra outra
controvérsia, no auge da pandemia, quando bolsonaristas criticando o passaporte
vacinal foram acusados de promover o nazismo.
Logo depois da publicação do MTST, o senador Ciro Nogueira, do PP, disse numa rede social que o MTST comparava Jesus “com um ‘bandido’”. O presidente do PL, Valdemar Costa Neto, afirmou que Boulos “prega intolerância religiosa no dia mais triste da tradição cristã”. A deputada Carla Zambelli, que o MTST “vilipendia a fé cristã”. O pastor Silas Malafaia, que a esquerda “odeia o cristianismo”. E o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, chamou a imagem de “sacrilégio”. Uma enxurrada de comentários de cidadãos de direita nas mídias sociais foi na mesma linha.
Por um momento, parecia que lideranças de
direita distorciam maliciosamente a mensagem da publicação do MTST para atacar
Guilherme Boulos, ex-líder do movimento e candidato a prefeito de São Paulo.
Mas quem quer que tenha conversado na última semana com gente de direita sabe
que a interpretação de que a publicação do MTST ataca o cristianismo é
dominante.
Para qualquer um de esquerda, a mensagem era
bastante evidente: sugeria que o modo de pensar punitivista, que se expressa na
máxima “bandido bom é bandido morto”, levou a respaldar a crucificação de
Jesus. Tratava-se de uma denúncia desse modo de pensar e de uma sugestão de que
o punitivismo é anticristão. Quando foi atacado pela publicação, o MTST reagiu
sugerindo a leitura de Lucas: 23, passagem em que Pilatos e Herodes discutem a
punição de Jesus.
Como uma crítica ao punitivismo pode ser lida
como ataque ao cristianismo? Antes de responder à pergunta, vale a pena
resgatar outro episódio em que uma grande divergência de interpretação virou do
avesso o sentido original de uma ação.
No dia 20 de outubro de 2021, a Câmara
Municipal de Porto Alegre discutia o veto do prefeito da cidade à adoção do
passaporte vacinal para o acesso a eventos desportivos. Um grupo de ativistas
contrários à obrigatoriedade da vacina contra a Covid-19 foi ao local
protestar. Houve tumulto, empurra-empurra e confusão. O presidente da sessão
pediu para os manifestantes se retirarem, sob a alegação de que um dos cartazes
fazia apologia ao nazismo. Pouco antes, manifestantes também foram acusados de
racismo ao comparar uma vereadora negra a uma empregada doméstica.
O cartaz em questão continha uma suástica no
centro e comparava o passaporte vacinal obrigatório ao nazismo. A ativista que
o carregava queria dizer que obrigar cidadãos a se vacinar era uma medida
autoritária e nazista — como, aliás, ela esclareceu quando foi chamada a depor
na delegacia.
Na mesma sessão, outro incidente envolveu
deslocamento de sentido. A certa altura, uma das ativistas discutiu com uma
vereadora negra do PCdoB e disse a ela: “Eu sou o povo. Tu representa a mim. Tu
é minha empregada”. Os ativistas contra a obrigatoriedade da vacina queriam
dizer que um representante no Parlamento trabalha para o povo, mas tudo o que
os parlamentares de esquerda conseguiram entender foi que eram racistas ao
afirmar que uma mulher negra deveria ser empregada (doméstica) deles.
Como um cartaz crítico ao nazismo pode ser
lido como apologia e uma manifestação afirmando que um representante eleito
deve obedecer ao povo se converteu em ato de racismo?
Nos três casos — os dois antigos envolvendo o
passaporte vacinal e o mais recente do MTST sobre o punitivismo —, o viés de
confirmação condicionou a interpretação de expressões do campo adversário a
sentidos já atribuídos a eles.
Conservadores acreditam que a esquerda é
anticristã. Acreditam que campanhas da esquerda a favor da legalização do
aborto minam concepções fundamentais do cristianismo. Por isso, quando veem a
publicação do MTST, são imediatamente levados a uma interpretação de que seu
sentido é anticristão.
O mesmo acontece na esquerda. Ela acredita
que a direita bolsonarista é racista e fascista. Quando surge um cartaz com uma
suástica, ele é imediatamente lido como apologia ao nazismo. Da mesma maneira,
quando um bolsonarista usa a palavra “empregada” para se referir a uma
vereadora negra, só poderia ser para promover discriminação.
Estamos muito embebidos nos estereótipos que
fazemos de nossos adversários políticos. Está mais do que na hora de baixar a
fervura e lembrar que, do outro lado, também existem pessoas de boa-fé. Essa
intolerância toda não apenas fratura o país, também nos deixa cegos e surdos.
Verdade,apoiado.
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