sábado, 6 de abril de 2024

Pablo Ortellado - A convicção que cega

O Globo

Está mais do que na hora de baixar a fervura e lembrar que, do outro lado, também existem pessoas de boa-fé. Essa intolerância toda não apenas fratura o país, também nos deixa cegos e surdos

Na véspera da Páscoa, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) publicou uma imagem no perfil do grupo no Instagram. Nela, Jesus aparece crucificado enquanto três soldados romanos olham para a cruz e comentam: “Bandido bom é bandido morto”. A publicação gerou uma ruidosa controvérsia na internet, com a direita acusando o MTST de chamar Jesus de bandido. O conflito de interpretação na base da celeuma lembra outra controvérsia, no auge da pandemia, quando bolsonaristas criticando o passaporte vacinal foram acusados de promover o nazismo.

Logo depois da publicação do MTST, o senador Ciro Nogueira, do PP, disse numa rede social que o MTST comparava Jesus “com um ‘bandido’”. O presidente do PL, Valdemar Costa Neto, afirmou que Boulos “prega intolerância religiosa no dia mais triste da tradição cristã”. A deputada Carla Zambelli, que o MTST “vilipendia a fé cristã”. O pastor Silas Malafaia, que a esquerda “odeia o cristianismo”. E o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, chamou a imagem de “sacrilégio”. Uma enxurrada de comentários de cidadãos de direita nas mídias sociais foi na mesma linha.

Por um momento, parecia que lideranças de direita distorciam maliciosamente a mensagem da publicação do MTST para atacar Guilherme Boulos, ex-líder do movimento e candidato a prefeito de São Paulo. Mas quem quer que tenha conversado na última semana com gente de direita sabe que a interpretação de que a publicação do MTST ataca o cristianismo é dominante.

Para qualquer um de esquerda, a mensagem era bastante evidente: sugeria que o modo de pensar punitivista, que se expressa na máxima “bandido bom é bandido morto”, levou a respaldar a crucificação de Jesus. Tratava-se de uma denúncia desse modo de pensar e de uma sugestão de que o punitivismo é anticristão. Quando foi atacado pela publicação, o MTST reagiu sugerindo a leitura de Lucas: 23, passagem em que Pilatos e Herodes discutem a punição de Jesus.

Como uma crítica ao punitivismo pode ser lida como ataque ao cristianismo? Antes de responder à pergunta, vale a pena resgatar outro episódio em que uma grande divergência de interpretação virou do avesso o sentido original de uma ação.

No dia 20 de outubro de 2021, a Câmara Municipal de Porto Alegre discutia o veto do prefeito da cidade à adoção do passaporte vacinal para o acesso a eventos desportivos. Um grupo de ativistas contrários à obrigatoriedade da vacina contra a Covid-19 foi ao local protestar. Houve tumulto, empurra-empurra e confusão. O presidente da sessão pediu para os manifestantes se retirarem, sob a alegação de que um dos cartazes fazia apologia ao nazismo. Pouco antes, manifestantes também foram acusados de racismo ao comparar uma vereadora negra a uma empregada doméstica.

O cartaz em questão continha uma suástica no centro e comparava o passaporte vacinal obrigatório ao nazismo. A ativista que o carregava queria dizer que obrigar cidadãos a se vacinar era uma medida autoritária e nazista — como, aliás, ela esclareceu quando foi chamada a depor na delegacia.

Na mesma sessão, outro incidente envolveu deslocamento de sentido. A certa altura, uma das ativistas discutiu com uma vereadora negra do PCdoB e disse a ela: “Eu sou o povo. Tu representa a mim. Tu é minha empregada”. Os ativistas contra a obrigatoriedade da vacina queriam dizer que um representante no Parlamento trabalha para o povo, mas tudo o que os parlamentares de esquerda conseguiram entender foi que eram racistas ao afirmar que uma mulher negra deveria ser empregada (doméstica) deles.

Como um cartaz crítico ao nazismo pode ser lido como apologia e uma manifestação afirmando que um representante eleito deve obedecer ao povo se converteu em ato de racismo?

Nos três casos — os dois antigos envolvendo o passaporte vacinal e o mais recente do MTST sobre o punitivismo —, o viés de confirmação condicionou a interpretação de expressões do campo adversário a sentidos já atribuídos a eles.

Conservadores acreditam que a esquerda é anticristã. Acreditam que campanhas da esquerda a favor da legalização do aborto minam concepções fundamentais do cristianismo. Por isso, quando veem a publicação do MTST, são imediatamente levados a uma interpretação de que seu sentido é anticristão.

O mesmo acontece na esquerda. Ela acredita que a direita bolsonarista é racista e fascista. Quando surge um cartaz com uma suástica, ele é imediatamente lido como apologia ao nazismo. Da mesma maneira, quando um bolsonarista usa a palavra “empregada” para se referir a uma vereadora negra, só poderia ser para promover discriminação.

Estamos muito embebidos nos estereótipos que fazemos de nossos adversários políticos. Está mais do que na hora de baixar a fervura e lembrar que, do outro lado, também existem pessoas de boa-fé. Essa intolerância toda não apenas fratura o país, também nos deixa cegos e surdos.

 

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