domingo, 14 de abril de 2024

Paulo Fábio Dantas Neto* - Universidades e institutos federais: a busca de uma razão razoável

É possível que ocorra, em âmbito nacional, já a partir de abril, uma greve de docentes nas universidades e institutos federais de educação, já tendo sido tomada essa decisão em algumas delas. Servidores técnico-administrativos da educação superior já adotam, há semanas, esse expediente de pressão. 

A possibilidade é colocada mesmo quando a ministra da Gestão e Inovação, Esther Dweck – que gere, simultaneamente, dezenas de mesas de negociação com categorias específicas de servidores públicos – informa que o governo trabalha para apresentar, justamente aos docentes e técnico-administrativos do setor da Educação, uma contraproposta de reajuste salarial (a proposta anterior do governo, de 4,5% em 2025 e 4,5% em 2026 não foi aceita) e uma proposta de reestruturação da carreira, no caso dos segundos. Um vídeo com a fala de Dweck (Canal Gov - “Bom dia ministra” - 11.04.24) circulou amplamente e seu conteúdo foi bem contextualizado e explicado mais detalhadamente em matérias publicadas nos dias 11 e 12 de abril, pelo jornal O Globo (“Ministra quer prioridade no reajuste de servidores para a educação federal” – matéria de Geralda Doca, em 11.04.24 e “Governo deve apresentar nova proposta de reajuste para servidores” - matéria de Renan Monteiro, em 12.04.24). 

É verdade que a vontade da ministra da Gestão não é garantia bastante, face a dificuldades de ordens orçamentária e fiscal enfrentadas pelo governo, as quais estão entregues, respectivamente, aos cuidados das pastas do Planejamento e da Fazenda. Na prática, a posição do ministro Fernando Haddad será a mais decisiva, pois ele não apenas fala por toda a equipe econômica (pasta do Planejamento incluída), como parece lhe caber protagonismo decisório mais forte no triunvirato encarregado de discutir o tema, formado por ele mesmo, pela própria ministra Esther Dweck e pelo ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa. Pelos indícios, é razoável supor que Haddad terá a penúltima palavra, aquela a ser submetida à decisão final do Presidente da República. Contudo, é igualmente razoável, senão óbvio, pensar que a ministra da Gestão não teria formalizado suas declarações sem aval da Fazenda e/ou do presidente. A situação, em sua complexidade e riscos, comporta a hipótese de que está havendo tratamento relativamente diferenciado aos servidores da educação que, de resto, representam parcela considerável, senão majoritária, dos servidores permanentes do Poder Executivo.

Acenos governamentais não parecem ser capazes de segurar a disposição de greve capitaneada pelo Andes-SN, antiga Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior, hoje o mais relevante sindicato da categoria. Para radicalizar o processo, esse ator, mobilizado há meses, usa, no momento, uma dura declaração do ministro Haddad - dada no mesmo dia 11.04, após uma reunião de mesa de negociação com entidades sindicais do serviço público - descartando reajuste geral em 2024, em razão da meta do déficit zero e outros requerimentos do arcabouço fiscal negociado com o Congresso no ano passado.

O desfecho da reunião e a declaração do ministro foram interpretados como uma "prova" de que o governo faz o jogo bruto do "mercado". Serviram de argumento para o Andes-SN baixar, no mesmo dia, para as assembleias de cada universidade federal do país, uma "palavra de ordem", em sentido estrito. Foi aprovado, na cúpula dessa vertente do movimento docente, um indicativo de greve por tempo indeterminado a partir da próxima segunda-feira, dia 15.04. Ancorada na declaração do ministro, a entidade induz à antecipação das assembleias onde ainda não se realizaram e a que se as refaça, onde elas se manifestaram (a maioria, aliás) contra a greve. Tudo em nome da construção e condução unificadas do movimento. Na prática, uma pretensão de verticalidade que briga com a complexidade da situação e com a heterogeneidade das posições até aqui registradas naquelas assembleias. 

Já faz muito tempo que sindicatos do setor público se desenvolveram como seres anfíbios, que se conduzem, politicamente, como entes paraestatais, mesmo quando se opõem sistematicamente a governos (caso do Andes), ou até para fazerem essa oposição sem correrem riscos organizacionais. Exemplares dessa situação no mínimo estranha foram greves de servidores públicos institucionalmente amparadas, celebradas como heroicas quando, na verdade, gozavam de isenção corporativa dos custos de mobilização que se apresentam a movimentos autônomos da sociedade civil.

É mais difícil hoje deflagrar um movimento desse tipo não só pela maior resistência dos governos (incluindo o Lula 3) como principalmente pela recepção negativa da sociedade, o que aumenta e potencializa essa resistência. Mesmo assim, os setores "avançados" do sindicalismo emulam a tradição do corporativismo empresarial e tratam, no discurso, o Estado como vilão ou patrão, mas, ao fim e ao cabo, tentam fazê-lo de sócio provedor de meios de reprodução de sua militância. Evidentemente precisam, em troca, devolver a sua base algum tipo de atendimento a legítimas aspirações materiais. Por vezes o fazem. Às vezes nem isso. 

A pedagogia do fato consumado - adotada, como estratégia, por esses grupos mais radicalizados do sindicalismo do setor público, a cada processo cíclico de mobilização grevista - começa agindo sobre as próprias assembleias para depois pressionar os locais de trabalho. Em março, a maioria das assembleias decidiu aguardar a negociação de maio. Já então o governo foi claro, através de falas de duas ministras (Esther Dweck e Simone Tebet), sobre ser maio o momento de poder sustentar alguma proposta orçamentariamente responsável. Pela estratégia do fato consumado acelera-se as coisas para que a greve chegue antes. O abril em curso é o do “processo de construção” da greve.

Agora, antes de findo abril, o indicativo de greve já é a pauta imposta verticalmente às assembleias. A declaração de Haddad é o pavio e a justa motivação salarial, o combustível concreto. Como maio seria a data para resolver sobre a hipótese do reajuste e o bom senso manda aguardar, o restante da pauta (ela é extensa, como em toda greve sem prazo para terminar) é usado, seletivamente, para justificar a antecipação. O argumento é "holístico". Tudo é conectado, logo, a forma de luta é única, para todos os itens. Se não for pela reivindicação salarial, que seja por outra urgência, contanto que a greve saia já. 

Os setores sindicais adversários ou não alinhados com essa estratégia costumam atuar com uma ambiguidade sintomática da hegemonia da política do Andes-SN. De algum modo, sua pauta e seu discurso são condicionados pelo posicionamento daquele ator sindical, tornando provável o cenário de que terminem indo, como ocorreu outras vezes, a reboque de uma teia de fatos consumados. 

Entrou-se no funil estreito da greve como objetivo inegociável. Pelo contexto externo (conjuntura política, risco de isolamento social, etc..), pode até não ser esse o desfecho, mas sindicatos como a APUB, por exemplo - que representa os docentes federais na Bahia sem estar filiada ao Andes, mas ao Proifes, articulação sindical alternativa - já estão emparedados, sob pressão da cúpula sindical mais forte. Para evitar, ou às vezes só dissimular, uma adesão por gravidade, adotam eufemismos em seus discursos. O que significa "ocupação permanente”, como alternativa à greve? Parece outro modo de falar, ou de ao menos legitimar, paralisação das atividades normais. Assim como a antecipação de assembleias, mesmo cercadas de explicações contingentes laterais, é, na prática, antecipação da votação do indicativo de greve. Essa, longe de ser um "anseio das bases" é objetivo estratégico de atores políticos que controlam os instrumentos de pressão. Através deles, "conscientizarão" as bases no "processo da luta".

Os setores sindicais não alinhados, situados em associações locais ou entidades estaduais, parecem constrangidos por uma acusação de dividirem um movimento de cúpula supostamente unificado “pelas bases”. Introjetando seu não-alinhamento como uma espécie de “pecado original”, com o correr das semanas, passam, de forma gradativa, a recuar e a lutar apenas para não serem simplesmente depostos pela situação de duplo poder sindical que as assembleias legitimarão a partir do momento em que decidirem instalar um "comando" de greve em cada local. A terminologia de inspiração militar não é casual. É desses comandos entrincheirados nas assembleias que partirão as ações de pressão sobre os locais de trabalho, até a sua efetiva paralisação. Com a antecipação das assembleias monta-se o palco para o protagonismo voluntarista dos atores do script grevista. Será a hora de discursos apologéticos enaltecendo a "soberania" das mesmas assembleias, cujas decisões acabaram de ignorar.

Há espaço para se discutir/alterar esses métodos? Óbvio que não. A hora é de luta e fora dela qualquer reflexão ou crítica é cancelada como divisionismo. Já que o movimento entra em recesso entre uma onda grevista e outra, pela lógica conservantista do establishment sindical, o momento da discussão sobre os métodos é nunca. As chances de quem quer promover essa discussão pelos canais "adequados" é semelhante à de um sentenciado num cenário pós contrato hobbesiano: reconhece-se - vá lá! - seu direito individual de retornar ao estado de natureza, com os custos de reputação correspondentes. Mas no mundo (hiper) institucionalizado do "movimento" (e aqui temos um paradoxo conceitual desconcertante, entre instituição e movimento) a soberania é e só pode ser exercida de modo absoluto. 

Voltando ao ponto principal: pelo que o cenário geral insinua, uma solução possível para contemplar parte das reivindicações salariais e de carreira de servidores das universidades não estará conectada a um reajuste para o conjunto dos servidores públicos. Depreende-se que um reajuste geral, no entender do governo, colide com a política de responsabilidade fiscal, o arcabouço que ancora o necessário diálogo de Haddad com setores do empresariado e do Congresso. Esse diálogo parece comportar o exame de situações específicas. As universidades seriam provável exceção ao limite dado pelo ministro. 

Com realismo, o movimento sindical docente precisaria se esforçar muito para fazer sua parte, conduzindo-se como voz dos interesses legítimos da categoria e argumentando em favor desse tratamento específico a partir do papel estratégico das universidades e institutos para os declarados objetivos de recuperação e reconstrução do país. Isso não se confunde com fazer acordos debaixo do pano, com o governo ou o Congresso, em torno de privilégios corporativos. Mas também não se pode reduzir a questão dos servidores e docentes da educação superior a ser parte de uma pauta de coalizão do setor público contra a "lógica do mercado", sob a falsa premissa de uma hipotética identidade “de classe”, ou algo similar. Todas as categorias do setor público têm problemas e circunstâncias específicas que precisam ser reconhecidas como pontos de partida de negociações num momento de vacas magras. 

Por isso, as representações sindicais do setor precisariam abrir - elas próprias - direta e autonomamente, diálogo com a cúpula e com várias bancadas do Congresso, inclusive e principalmente as que defendem o arcabouço fiscal.  É incabível, de um ponto de vista racional, pensar que, numa queda de braço, levarão o governo a detonar a sua política econômica para atender os docentes e demais servidores das universidades e institutos. Qualquer abordagem responsável desses assuntos, além de ter em conta a abrangência maior das razões da política econômica (que não são indiscutíveis, mas também não podem ser descartáveis), precisará considerar importantes circunstâncias adversas às pretensões de um movimento de paralisação geral, que ora se intenta consumar. 

Primeiro, há números irrefutáveis, que colocam os docentes das universidades públicas em situação salarial menos adversa do que a dos servidores públicos do Poder Executivo, em geral. Por outro lado, números igualmente irrefutáveis põem aquela categoria a anos-luz de categorias privilegiadas do serviço público. Inexiste clima de razoabilidade bastante para discutir prioridades de interesse público em meio a essas assimetrias. Mas esse clima precisa ser buscado sem descanso. É preciso fixar critérios para correção das assimetrias e também discutir justificativas para que algumas sejam mantidas, por critérios de interesse social e/ou de relevância estratégica de certas subcategorias. Tudo isso sem deixar de levar em conta a força de pressão que cada uma delas possui e que não é possível revogar.  Pensando objetivamente, quais razões podem ser legitimamente alegadas para obter, de fato, do governo, como decisão política, um tratamento especial, como a ministra da Gestão acenou?

Segundo problema é a “fuga para a frente" de um governo que, por objetivos políticos imediatos, por vezes ignora números e subestima conflitos e disfuncionalidades administrativas que repercutem sobre a gestão do orçamento público. Assiste-se, por exemplo, ao ensaio de retomada de uma política expansionista do setor das universidades e institutos federais. Em que pese a importância estratégica desses últimos, de outro lado, a retórica “desenvolvimentista” não atenta o bastante à necessidade de diagnósticos e avaliações sobre a situação presente, herança de decisões pretéritas. Obras inacabadas, de variáveis graus de necessidade real; campi abertos há mais de década sem criteriosa avaliação de sua viabilidade; universidades academicamente inviáveis que precisariam ser incorporadas, ou não, a outras; dramas orçamentários que afligem universidades consolidadas; novas obrigações com assistência estudantil assumidas em razão da própria expansão que alterou sua composição social. 

É óbvia a escassez não apenas de recursos, mas de clareza política sobre a articulação da política educacional com a de ciência e tecnologia e com a de desenvolvimento social para atuar sobre as universidades e institutos federais. Sem essa clareza, a incerteza reinará sempre a favor dos mais fortes e não se saberá, por exemplo, a qual setor do governo federal compete cada parte do compromisso seu com a democratização social das instituições de ensino superior. A inércia fará recair sobre elas, automaticamente (como já ocorre), a responsabilidade pela permanência dos seus estudantes, às expensas de suas tradicionais atividades-fim, ligadas ao ensino, à pesquisa e à extensão. Se a lógica da fuga para a frente imperar no tratamento das reivindicações dos docentes e na também necessária recomposição dos orçamentos de entes federais da educação superior, é previsível um estrangulamento resultante da necessidade de atendê-la e de ter, ao mesmo tempo, recursos para expandi-la. 

Interligadas ao quadro alinhavado acima – e contribuindo para agravá-lo - estão também dificuldades compreensíveis das universidades de recuperarem o já precário padrão de funcionamento, enquanto serviço público, de antes da pandemia. Não são desprezíveis efeitos perturbadores e mesmo corrosivos da combinação da pandemia com a incúria governamental para com a educação, no quadriênio anterior. Só isso faz de uma paralisação prolongada um risco de proporções imprevisíveis. Esforços materiais das famílias para manter seus filhos nas instituições e sacrifícios pessoais de estudantes que não podem contar com apoio familiar tendem a se prolongar no tempo e a aumentar em valor e em intensidade. Após uma longa paralisação, a conta do confronto político não fechará sem esse débito. Sem contar as perdas pedagógicas inerentes à interrupção do semestre letivo, a frustração e o desânimo correlatos. 

Esse conjunto de adversidades mostra um áspero caminho a percorrer para encontrar argumentos de natureza pública em favor da melhoria salarial e de condições de trabalho docente nas federais. É nesse contexto adverso que um arrastão sindical está levando essa categoria a uma greve que pode talvez paralisar os campi por tempo indeterminado. A razão razoável está escondida.  Precisa ser encontrada.

*Cientista político e professor da UFBa

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