A possibilidade é colocada mesmo quando a ministra da Gestão e Inovação, Esther Dweck – que gere, simultaneamente, dezenas de mesas de negociação com categorias específicas de servidores públicos – informa que o governo trabalha para apresentar, justamente aos docentes e técnico-administrativos do setor da Educação, uma contraproposta de reajuste salarial (a proposta anterior do governo, de 4,5% em 2025 e 4,5% em 2026 não foi aceita) e uma proposta de reestruturação da carreira, no caso dos segundos. Um vídeo com a fala de Dweck (Canal Gov - “Bom dia ministra” - 11.04.24) circulou amplamente e seu conteúdo foi bem contextualizado e explicado mais detalhadamente em matérias publicadas nos dias 11 e 12 de abril, pelo jornal O Globo (“Ministra quer prioridade no reajuste de servidores para a educação federal” – matéria de Geralda Doca, em 11.04.24 e “Governo deve apresentar nova proposta de reajuste para servidores” - matéria de Renan Monteiro, em 12.04.24).
É verdade que a vontade da ministra da Gestão
não é garantia bastante, face a dificuldades de ordens orçamentária e fiscal
enfrentadas pelo governo, as quais estão entregues, respectivamente, aos
cuidados das pastas do Planejamento e da Fazenda. Na prática, a posição do
ministro Fernando Haddad será a mais decisiva, pois ele não apenas fala por
toda a equipe econômica (pasta do Planejamento incluída), como parece lhe caber
protagonismo decisório mais forte no triunvirato encarregado de discutir o
tema, formado por ele mesmo, pela própria ministra Esther Dweck e pelo
ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa. Pelos indícios, é razoável supor que
Haddad terá a penúltima palavra, aquela a ser submetida à decisão final do
Presidente da República. Contudo, é igualmente razoável, senão óbvio, pensar
que a ministra da Gestão não teria formalizado suas declarações sem aval da
Fazenda e/ou do presidente. A situação, em sua complexidade e riscos, comporta
a hipótese de que está havendo tratamento relativamente diferenciado aos
servidores da educação que, de resto, representam parcela considerável, senão
majoritária, dos servidores permanentes do Poder Executivo.
Acenos governamentais não parecem ser capazes
de segurar a disposição de greve capitaneada pelo Andes-SN, antiga Associação
Nacional dos Docentes do Ensino Superior, hoje o mais relevante sindicato da
categoria. Para radicalizar o processo, esse ator, mobilizado há meses, usa, no
momento, uma dura declaração do ministro Haddad - dada no mesmo dia 11.04, após
uma reunião de mesa de negociação com entidades sindicais do serviço público -
descartando reajuste geral em 2024, em razão da meta do déficit zero e outros
requerimentos do arcabouço fiscal negociado com o Congresso no ano passado.
O desfecho da reunião e a declaração do
ministro foram interpretados como uma "prova" de que o governo faz o
jogo bruto do "mercado". Serviram de argumento para o Andes-SN
baixar, no mesmo dia, para as assembleias de cada universidade federal do país,
uma "palavra de ordem", em sentido estrito. Foi aprovado, na cúpula
dessa vertente do movimento docente, um indicativo de greve por tempo
indeterminado a partir da próxima segunda-feira, dia 15.04. Ancorada na
declaração do ministro, a entidade induz à antecipação das assembleias onde
ainda não se realizaram e a que se as refaça, onde elas se manifestaram (a
maioria, aliás) contra a greve. Tudo em nome da construção e condução
unificadas do movimento. Na prática, uma pretensão de verticalidade que briga
com a complexidade da situação e com a heterogeneidade das posições até aqui
registradas naquelas assembleias.
Já faz muito tempo que sindicatos do setor
público se desenvolveram como seres anfíbios, que se conduzem, politicamente,
como entes paraestatais, mesmo quando se opõem sistematicamente a governos
(caso do Andes), ou até para fazerem essa oposição sem correrem riscos
organizacionais. Exemplares dessa situação no mínimo estranha foram greves de
servidores públicos institucionalmente amparadas, celebradas como heroicas
quando, na verdade, gozavam de isenção corporativa dos custos de mobilização
que se apresentam a movimentos autônomos da sociedade civil.
É mais difícil hoje deflagrar um movimento
desse tipo não só pela maior resistência dos governos (incluindo o Lula 3) como
principalmente pela recepção negativa da sociedade, o que aumenta e
potencializa essa resistência. Mesmo assim, os setores "avançados" do
sindicalismo emulam a tradição do corporativismo empresarial e tratam, no
discurso, o Estado como vilão ou patrão, mas, ao fim e ao cabo, tentam fazê-lo
de sócio provedor de meios de reprodução de sua militância. Evidentemente
precisam, em troca, devolver a sua base algum tipo de atendimento a legítimas
aspirações materiais. Por vezes o fazem. Às vezes nem isso.
A pedagogia do fato consumado - adotada, como
estratégia, por esses grupos mais radicalizados do sindicalismo do setor
público, a cada processo cíclico de mobilização grevista - começa agindo sobre
as próprias assembleias para depois pressionar os locais de trabalho. Em março,
a maioria das assembleias decidiu aguardar a negociação de maio. Já então o
governo foi claro, através de falas de duas ministras (Esther Dweck e Simone
Tebet), sobre ser maio o momento de poder sustentar alguma proposta orçamentariamente
responsável. Pela estratégia do fato consumado acelera-se as coisas para que a
greve chegue antes. O abril em curso é o do “processo de construção” da greve.
Agora, antes de findo abril, o indicativo de
greve já é a pauta imposta verticalmente às assembleias. A declaração de Haddad
é o pavio e a justa motivação salarial, o combustível concreto. Como maio seria
a data para resolver sobre a hipótese do reajuste e o bom senso manda aguardar,
o restante da pauta (ela é extensa, como em toda greve sem prazo para terminar)
é usado, seletivamente, para justificar a antecipação. O argumento é
"holístico". Tudo é conectado, logo, a forma de luta é única, para
todos os itens. Se não for pela reivindicação salarial, que seja por outra
urgência, contanto que a greve saia já.
Os setores sindicais adversários ou não
alinhados com essa estratégia costumam atuar com uma ambiguidade sintomática da
hegemonia da política do Andes-SN. De algum modo, sua pauta e seu discurso são
condicionados pelo posicionamento daquele ator sindical, tornando provável o
cenário de que terminem indo, como ocorreu outras vezes, a reboque de uma teia
de fatos consumados.
Entrou-se no funil estreito da greve como
objetivo inegociável. Pelo contexto externo (conjuntura política, risco de
isolamento social, etc..), pode até não ser esse o desfecho, mas sindicatos
como a APUB, por exemplo - que representa os docentes federais na Bahia sem
estar filiada ao Andes, mas ao Proifes, articulação sindical alternativa - já
estão emparedados, sob pressão da cúpula sindical mais forte. Para evitar, ou
às vezes só dissimular, uma adesão por gravidade, adotam eufemismos em seus
discursos. O que significa "ocupação permanente”, como alternativa à
greve? Parece outro modo de falar, ou de ao menos legitimar, paralisação das
atividades normais. Assim como a antecipação de assembleias, mesmo cercadas de
explicações contingentes laterais, é, na prática, antecipação da votação do
indicativo de greve. Essa, longe de ser um "anseio das bases" é
objetivo estratégico de atores políticos que controlam os instrumentos de
pressão. Através deles, "conscientizarão" as bases no "processo
da luta".
Os setores sindicais não alinhados, situados
em associações locais ou entidades estaduais, parecem constrangidos por uma
acusação de dividirem um movimento de cúpula supostamente unificado “pelas
bases”. Introjetando seu não-alinhamento como uma espécie de “pecado original”,
com o correr das semanas, passam, de forma gradativa, a recuar e a lutar apenas
para não serem simplesmente depostos pela situação de duplo poder sindical que
as assembleias legitimarão a partir do momento em que decidirem instalar um
"comando" de greve em cada local. A terminologia de inspiração
militar não é casual. É desses comandos entrincheirados nas assembleias que
partirão as ações de pressão sobre os locais de trabalho, até a sua efetiva
paralisação. Com a antecipação das assembleias monta-se o palco para o
protagonismo voluntarista dos atores do script grevista. Será a hora de
discursos apologéticos enaltecendo a "soberania" das mesmas
assembleias, cujas decisões acabaram de ignorar.
Há espaço para se discutir/alterar esses
métodos? Óbvio que não. A hora é de luta e fora dela qualquer reflexão ou
crítica é cancelada como divisionismo. Já que o movimento entra em recesso
entre uma onda grevista e outra, pela lógica conservantista do establishment sindical,
o momento da discussão sobre os métodos é nunca. As chances de quem quer
promover essa discussão pelos canais "adequados" é semelhante à de um
sentenciado num cenário pós contrato hobbesiano: reconhece-se - vá lá! - seu
direito individual de retornar ao estado de natureza, com os custos de
reputação correspondentes. Mas no mundo (hiper) institucionalizado do
"movimento" (e aqui temos um paradoxo conceitual desconcertante,
entre instituição e movimento) a soberania é e só pode ser exercida de modo
absoluto.
Voltando ao ponto principal: pelo que o
cenário geral insinua, uma solução possível para contemplar parte das
reivindicações salariais e de carreira de servidores das universidades não
estará conectada a um reajuste para o conjunto dos servidores públicos.
Depreende-se que um reajuste geral, no entender do governo, colide com a
política de responsabilidade fiscal, o arcabouço que ancora o necessário
diálogo de Haddad com setores do empresariado e do Congresso. Esse diálogo
parece comportar o exame de situações específicas. As universidades seriam
provável exceção ao limite dado pelo ministro.
Com realismo, o movimento sindical docente
precisaria se esforçar muito para fazer sua parte, conduzindo-se como voz dos
interesses legítimos da categoria e argumentando em favor desse tratamento
específico a partir do papel estratégico das universidades e institutos para os
declarados objetivos de recuperação e reconstrução do país. Isso não se
confunde com fazer acordos debaixo do pano, com o governo ou o Congresso, em
torno de privilégios corporativos. Mas também não se pode reduzir a questão dos
servidores e docentes da educação superior a ser parte de uma pauta de coalizão
do setor público contra a "lógica do mercado", sob a falsa premissa
de uma hipotética identidade “de classe”, ou algo similar. Todas as categorias
do setor público têm problemas e circunstâncias específicas que precisam ser
reconhecidas como pontos de partida de negociações num momento de vacas
magras.
Por isso, as representações sindicais do
setor precisariam abrir - elas próprias - direta e autonomamente, diálogo com a
cúpula e com várias bancadas do Congresso, inclusive e principalmente as que
defendem o arcabouço fiscal. É incabível, de um ponto de vista racional,
pensar que, numa queda de braço, levarão o governo a detonar a sua política
econômica para atender os docentes e demais servidores das universidades e
institutos. Qualquer abordagem responsável desses assuntos, além de ter em
conta a abrangência maior das razões da política econômica (que não são
indiscutíveis, mas também não podem ser descartáveis), precisará considerar
importantes circunstâncias adversas às pretensões de um movimento de
paralisação geral, que ora se intenta consumar.
Primeiro, há números irrefutáveis, que
colocam os docentes das universidades públicas em situação salarial menos
adversa do que a dos servidores públicos do Poder Executivo, em geral. Por
outro lado, números igualmente irrefutáveis põem aquela categoria a anos-luz de
categorias privilegiadas do serviço público. Inexiste clima de razoabilidade
bastante para discutir prioridades de interesse público em meio a essas
assimetrias. Mas esse clima precisa ser buscado sem descanso. É preciso fixar
critérios para correção das assimetrias e também discutir justificativas para
que algumas sejam mantidas, por critérios de interesse social e/ou de
relevância estratégica de certas subcategorias. Tudo isso sem deixar de levar
em conta a força de pressão que cada uma delas possui e que não é possível
revogar. Pensando objetivamente, quais razões podem ser legitimamente
alegadas para obter, de fato, do governo, como decisão política, um tratamento
especial, como a ministra da Gestão acenou?
Segundo problema é a “fuga para a
frente" de um governo que, por objetivos políticos imediatos, por vezes
ignora números e subestima conflitos e disfuncionalidades administrativas que
repercutem sobre a gestão do orçamento público. Assiste-se, por exemplo, ao
ensaio de retomada de uma política expansionista do setor das universidades e
institutos federais. Em que pese a importância estratégica desses últimos, de
outro lado, a retórica “desenvolvimentista” não atenta o bastante à necessidade
de diagnósticos e avaliações sobre a situação presente, herança de decisões
pretéritas. Obras inacabadas, de variáveis graus de necessidade real; campi abertos
há mais de década sem criteriosa avaliação de sua viabilidade; universidades
academicamente inviáveis que precisariam ser incorporadas, ou não, a outras;
dramas orçamentários que afligem universidades consolidadas; novas obrigações
com assistência estudantil assumidas em razão da própria expansão que alterou
sua composição social.
É óbvia a escassez não apenas de recursos,
mas de clareza política sobre a articulação da política educacional com a de
ciência e tecnologia e com a de desenvolvimento social para atuar sobre as
universidades e institutos federais. Sem essa clareza, a incerteza reinará
sempre a favor dos mais fortes e não se saberá, por exemplo, a qual setor do
governo federal compete cada parte do compromisso seu com a democratização
social das instituições de ensino superior. A inércia fará recair sobre elas,
automaticamente (como já ocorre), a responsabilidade pela permanência dos seus
estudantes, às expensas de suas tradicionais atividades-fim, ligadas ao ensino,
à pesquisa e à extensão. Se a lógica da fuga para a frente imperar no
tratamento das reivindicações dos docentes e na também necessária recomposição
dos orçamentos de entes federais da educação superior, é previsível um
estrangulamento resultante da necessidade de atendê-la e de ter, ao mesmo
tempo, recursos para expandi-la.
Interligadas ao quadro alinhavado acima – e
contribuindo para agravá-lo - estão também dificuldades compreensíveis das
universidades de recuperarem o já precário padrão de funcionamento, enquanto
serviço público, de antes da pandemia. Não são desprezíveis efeitos
perturbadores e mesmo corrosivos da combinação da pandemia com a incúria
governamental para com a educação, no quadriênio anterior. Só isso faz de uma
paralisação prolongada um risco de proporções imprevisíveis. Esforços materiais
das famílias para manter seus filhos nas instituições e sacrifícios pessoais de
estudantes que não podem contar com apoio familiar tendem a se prolongar no
tempo e a aumentar em valor e em intensidade. Após uma longa paralisação, a
conta do confronto político não fechará sem esse débito. Sem contar as perdas
pedagógicas inerentes à interrupção do semestre letivo, a frustração e o
desânimo correlatos.
Esse conjunto de adversidades mostra um
áspero caminho a percorrer para encontrar argumentos de natureza pública em
favor da melhoria salarial e de condições de trabalho docente nas federais. É
nesse contexto adverso que um arrastão sindical está levando essa categoria a
uma greve que pode talvez paralisar os campi por tempo indeterminado. A razão
razoável está escondida. Precisa ser encontrada.
*Cientista político e professor da UFBa
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