quarta-feira, 10 de abril de 2024

Roberto DaMatta - Amizade

O Globo

Nada melhor que ser amigo do supremo magistrado; do vingativo coroado — e do também generoso e misericordioso que perdoa e anistia os conhecidos

É uma palavra afetuosa e uma importante categoria cultural, num sistema movido a oposições de classe, cor e poder político, graças a um complicado pacote hierárquico de prerrogativas e privilégios. Numa sociedade cuja vida doméstica reproduz quase literalmente uma velha e abominável servidão escravocrata, amigos e amizade são, como cargos públicos, diplomas e alianças matrimoniais, mecanismos capazes de eventualmente desbaratar os abismos de cor, instrução, residência, dinheiro e poder.

Amigo — esse sujeito e objeto da amizade —, um instrumento precioso num sistema em que se diz sem pensar que a gente faz tudo pelos amigos e despacha os inimigos e desconhecidos para a indigna desconsideração do anonimato e da impessoalidade dos infindáveis e barrocos processos legalísticos nem sempre legais...

Na sociedade que enlaça o universal e o pessoal e não enxerga a ambiguidade como sintoma de dúvida, mentira, má-fé ou dilema, a amizade é certeza, afeto e obrigação que muitas vezes perturba, porque implica fidelidades que ultrapassam o parentesco, a filiação partidária e ideológica e até o bom senso.

Ter a coragem para tudo, menos a coragem de resistir aos amigos é, como elabora magistralmente Oliveira Vianna em seu ignorado “Pequenos estudos de psychologia social” (publicado em 1923!), “talvez a síntese de toda nossa psicologia política: é a incapacidade moral de cada um de nós para resistir às sugestões da amizade e da gratidão, para sobrepor às contingências do personalismo os grandes interesses sociais, que caracterizam nossa índole cívica e definem as tendências mais íntimas da nossa conduta no poder”.

É justamente a amizade que, em seu personalismo, demanda a reciprocidade que obriga a inventar um castelo mal-assombrado de procedimentos e foros legais cuja ambiguidade tem a função de “acomodar” a ética relacional da “pessoa”, contrariando a impessoalidade e a universalidade igualitária da cidadania.

Caberia questionar tanto os limites da amizade quanto o rigor exagerado das leis, tendo como base não o pragmatismo elitista de nossa esfera jurídico-política, mas nosso real estilo de vida. Só assim seremos capazes de compreender o poder da amizade como instrumento de ascensão política e social e, muito especialmente, de corrupção estrutural como traço inevitável e funcional do sistema.

Dessa perspectiva, a popularidade do poema de Manuel Bandeira está no fato de, em Pasárgada, e sobretudo no Brasil, ser amigo do rei! Lá, como aqui, a amizade com o mandão é a chave que abre portas e promove todos os absurdos legais que nos revoltam neste maravilhoso, dilemático e, pelo visto, imutável Brasil.

Nada melhor, pois, do que ser amigo do supremo magistrado; do vingativo coroado — e do também generoso e misericordioso que perdoa e anistia os conhecidos.

Tal como nas ordenações Manuelinas e Filipinas em que a sentença de morte era abundante — ao lado das súplicas que perdoavam. Tal como ocorre até hoje na esfera da política mais densa (apelidada pelo vulgo de politicagem ou politicalha), vemos que os amigos de hoje foram os inimigos de ontem. Perderam o senso, como diz outro poeta? Nada disso, apenas complacentemente mudaram de lado, como faziam os homens quando as mulheres o tinham e ele era mais um véu de aprisionamento feminino.

Ter o rei como amigo é o máximo. Mas, e se o rei promete lhe foder? Fazer o quê? Sair de Pasárgada? Solicitar residência em Miami, esse santuário dos bem de vida?

Não sei o que pensar quando acompanho perplexo o destino da Operação Lava-Jato. Investigação comparada ao movimento tenentista, hoje ilegal e comandada por bandidos. Quem sabe se Pasárgada não é um xadrez que comanda o crime e, de lambuja, tornou-se uma eficiente pós-graduação do crime?

 

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