O Globo
Nada melhor que ser amigo do supremo
magistrado; do vingativo coroado — e do também generoso e misericordioso que
perdoa e anistia os conhecidos
É uma palavra afetuosa e uma importante
categoria cultural, num sistema movido a oposições de classe, cor e poder
político, graças a um complicado pacote hierárquico de prerrogativas e
privilégios. Numa sociedade cuja vida doméstica reproduz quase literalmente uma
velha e abominável servidão escravocrata, amigos e amizade são, como cargos
públicos, diplomas e alianças matrimoniais, mecanismos capazes de eventualmente
desbaratar os abismos de cor, instrução, residência, dinheiro e poder.
Amigo — esse sujeito e objeto da amizade —,
um instrumento precioso num sistema em que se diz sem pensar que a gente faz
tudo pelos amigos e despacha os inimigos e desconhecidos para a indigna
desconsideração do anonimato e da impessoalidade dos infindáveis e barrocos
processos legalísticos nem sempre legais...
Na sociedade que enlaça o universal e o pessoal e não enxerga a ambiguidade como sintoma de dúvida, mentira, má-fé ou dilema, a amizade é certeza, afeto e obrigação que muitas vezes perturba, porque implica fidelidades que ultrapassam o parentesco, a filiação partidária e ideológica e até o bom senso.
Ter a coragem para tudo, menos a coragem de
resistir aos amigos é, como elabora magistralmente Oliveira Vianna em seu
ignorado “Pequenos estudos de psychologia social” (publicado em 1923!), “talvez
a síntese de toda nossa psicologia política: é a incapacidade moral de cada um
de nós para resistir às sugestões da amizade e da gratidão, para sobrepor às
contingências do personalismo os grandes interesses sociais, que caracterizam
nossa índole cívica e definem as tendências mais íntimas da nossa conduta no
poder”.
É justamente a amizade que, em seu
personalismo, demanda a reciprocidade que obriga a inventar um castelo
mal-assombrado de procedimentos e foros legais cuja ambiguidade tem a função de
“acomodar” a ética relacional da “pessoa”, contrariando a impessoalidade e a
universalidade igualitária da cidadania.
Caberia questionar tanto os limites da
amizade quanto o rigor exagerado das leis, tendo como base não o pragmatismo
elitista de nossa esfera jurídico-política, mas nosso real estilo de vida. Só
assim seremos capazes de compreender o poder da amizade como instrumento de
ascensão política e social e, muito especialmente, de corrupção estrutural como
traço inevitável e funcional do sistema.
Dessa perspectiva, a popularidade do poema de
Manuel Bandeira está no fato de, em Pasárgada, e sobretudo no Brasil, ser amigo
do rei! Lá, como aqui, a amizade com o mandão é a chave que abre portas e
promove todos os absurdos legais que nos revoltam neste maravilhoso, dilemático
e, pelo visto, imutável Brasil.
Nada melhor, pois, do que ser amigo do
supremo magistrado; do vingativo coroado — e do também generoso e
misericordioso que perdoa e anistia os conhecidos.
Tal como nas ordenações Manuelinas e
Filipinas em que a sentença de morte era abundante — ao lado das súplicas que
perdoavam. Tal como ocorre até hoje na esfera da política mais densa (apelidada
pelo vulgo de politicagem ou politicalha), vemos que os amigos de hoje foram os
inimigos de ontem. Perderam o senso, como diz outro poeta? Nada disso, apenas
complacentemente mudaram de lado, como faziam os homens quando as mulheres o
tinham e ele era mais um véu de aprisionamento feminino.
Ter o rei como amigo é o máximo. Mas, e se o
rei promete lhe foder? Fazer o quê? Sair de Pasárgada? Solicitar residência em
Miami, esse santuário dos bem de vida?
Não sei o que pensar quando acompanho
perplexo o destino da Operação Lava-Jato. Investigação comparada ao movimento
tenentista, hoje ilegal e comandada por bandidos. Quem sabe se Pasárgada não é
um xadrez que comanda o crime e, de lambuja, tornou-se uma eficiente
pós-graduação do crime?
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