CartaCapital
O protagonismo da grande empresa e a relação de gato e rato entre protecionismo e livre-comércio continuam a dar o tom na economia internacional
Em sua edição de segunda-feira 13 de maio, o
jornal Valor apresenta um artigo de Assis Moreira. Empenhado em advertir os
leitores para o recrudescimento do conflito entre os espaços econômicos
nacionais e o retrocesso da globalização, o autor abre a matéria dedilhando os
acordes sensíveis dos desarranjos em curso:
“A taxação adicional dos EUA contra carros
elétricos e outros produtos ambientais chineses, esperada para esta semana,
será uma ilustração a mais da persistente erosão do sistema comercial e mais
turbulências à frente nas trocas globais. Isso ocorre em meio à aceleração das
transições ambientais e tecnológicas que estão mudando profundamente a forma
como vivemos e produzimos”.
Peço licença aos leitores de nossa CartaCapital para reproduzir o que escrevi no livro Os Antecedentes da Tormenta.
O economista americano Michael Hudson no
livro Trade, Development and Foreign Debt faz uma avaliação histórica e crítica
das teorias do comércio e das finanças internacionais, desde os mercantilistas
até os dias de hoje, com parada obrigatória em Adam Smith e David Ricardo. Ele
divide as teorias em dois grandes grupos:
1. Aquelas que definem o sistema
econômico internacional a partir de relações hierárquicas entre os Estados
Nacionais, suas moedas, seus sistemas financeiros e suas empresas.
2. As que advogam a existência de um
espaço homogêneo e “competitivo”, um campo aberto para o desenvolvimento dos
negócios e das trocas.
Para Hudson, as palavras “protecionista” e
“livre-cambista” são etiquetas ideológicas que ocultam as razões de fundo das
divergências. O capitalismo realmente existente conta uma história mais ambígua
do que aquela narrada pelos fundamentalistas – de um lado e de outro – a
respeito do desenvolvimento das relações econômicas internacionais.
Protecionismo e livre-cambismo convivem como cães e gatos. Brigam o tempo todo,
mas são inseparáveis.
No fim do século XIX, no apogeu da ordem
liberal burguesa, a expansão do comércio e das finanças internacionais estava
fundada nas relações simbióticas entre o liberalismo da Inglaterra hegemônica e
as políticas protecionistas de industrialização dos retardatários europeus e
dos Estados Unidos.
Ao longo do tumultuado período encravado
entre a Primeira Guerra Mundial e a vitória dos aliados em 1945, a fúria e a
desordem dos mercados colocaram em risco as normas de convivência e os valores
da ordem liberal capitalista. Já no fim do século 19, na esteira da Segunda
Revolução Industrial, a ampliação da presença das massas trabalhadoras nas
cidades e a conquista do sufrágio universal transformaram em problemas sociais
fatos que antes eram considerados resultados da conduta irregular dos indivíduos.
A ideia de desemprego como fenômeno social, produzido pela operação imperfeita
de mecanismos econômicos, é muito recente. Ainda no crepúsculo do século 19, o
desemprego era tomado como vagabundagem, inabilitação ou simples má sorte.
O colapso da ordem liberal foi acompanhado de
instabilidades financeiras, monetárias e cambiais devastadoras, transmitidas
por meio dos circuitos financeiros e comerciais que articulavam as economias
nacionais. Esse intervalo histórico foi marcado por uma reversão brutal das
convenções e das concepções que haviam prevalecido no mundo do liberalismo
comercial inglês regulado pelo padrão-ouro, ou seja, pela hegemonia da libra.
A defesa do espaço econômico e social das
nações ganhou preeminência sobre as propaladas vantagens do livre-comércio. O
avanço do protecionismo amparado em elevações de tarifas e desvalorizações
competitivas tornou-se o esporte predileto dos governos, dos empresários e dos
sindicatos. Os países envolvidos tratavam de despejar o desemprego de máquinas
e homens no território do vizinho.
Na ausência de uma coordenação global, o
nacionalismo econômico desvairado promoveu a contração do comércio
internacional. Os países com maior abertura ao intercâmbio externo de serviços
e mercadorias sofreram mais com a contração do comércio. As grandes economias
tiveram melhor desempenho com a busca da autarquia. Mas o conjunto da obra foi
desastroso.
A degradação da ordem liberal legitimou as
aventuras totalitárias à esquerda e à direita
Não por acaso, na esfera política, a
degradação da ordem liberal legitimou as aventuras totalitárias à esquerda e à
direita. O coletivismo dos anos 30 era isso mesmo: um fenômeno regressivo
promovido pela dissolução dos nexos sociais regulados pelos mercados. A crise
realizou a proeza de explicitar a violência essencial que espreita a sociedade
quando o indivíduo livre é lançado na liberdade desamparada. Nesse abismo sem
fundo germina a hostilidade em relação ao “outro”: primeiro as importações,
depois o imigrante, o estrangeiro, para culminar na eliminação da diferença sob
qualquer forma. Nas profundezas da crise, é necessário eliminar todas as
diferenças e mergulhar naquilo que é absolutamente semelhante, a totalidade
uterina e intolerante da massa informe e manipulável.
Na posteridade da Segunda Guerra Mundial, a
concorrência entre as empresas transnacionais da tríade desenvolvida (Estados
Unidos, Japão e Eurolândia) determinou a reconfiguração da geoeconomia global.
A transnacionalização da grande empresa – acompanhada da ampliação e da
reorientação dos fluxos de comércio – promoveu o investimento “cruzado” nos
mercados dos países industrializados e suscitou a redistribuição geográfica da
produção manufatureira para a periferia.
A “metástase” da grande empresa ganhou força
na década de 90 e, desde então, concentrou o investimento industrial na China e
na Ásia emergente.
A China fez a diferença. Sua
“competitividade” é crescente tanto nos mercados menos qualificados como, em
ritmo acelerado, nos de tecnologia mais sofisticada. Torna-se grande receptor
(incluída a intermediação das praças de Hong Kong e Cingapura) do investimento
direto norte-americano e, ao mesmo tempo, ganha participação crescente no
mercado de bens finais, peças e componentes dos Estados Unidos.
Simultaneamente, os chineses sustentam a continuada elevação da taxa de
acumulação de capital e a rápida graduação tecnológica de suas exportações.
Vou encerrar com um parágrafo da matéria de
primeira página da edição do Financial Times de 14 de maio: “A administração
Biden está aumentando drasticamente as tarifas sobre as importações
provenientes da China, incluindo veículos elétricos, baterias e semicondutores,
num esforço para proteger os empregos nos EUA antes das eleições de novembro. A
Casa Branca disse que a ação foi ‘cuidadosamente direcionada a setores
estratégicos’ que também incluíam alumínio e aço, minerais críticos, células
solares, guindastes portuários e produtos médicos”. •
Publicado na edição n° 1311 de CartaCapital, em 22 de maio de 2024.
Excelente! Há alguns anos os EUA pressionavam o Brasil e a China pra abrirem seus mercados. Hoje, os EUA tentam de várias maneiras fechar seus mercados pros produtos chineses e brasileiros... Liberalismo só quando interessa pros EUA ou pra Europa!
ResponderExcluirTodos os países possuem interesses e apostam suas fichas em suas vantagens comparativas. A depender do contexto, podem ter mais ou menos poder de barganha em relação aos seus " aliados " de ocasião ou maiores competidores.
ResponderExcluirA China soube utilizar-se de suas vantagens ao permitir a entrada de uma série de empresas no país. Da mesma forma, como qualquer outro país que se tornou potência, passou por uma cruel fase de " acumulação primitiva de capitais " explorando ao máximo a maior parte da mão de obra do país. Hoje colhe os frutos de ter se " associado " ao capital internacional, especialmente o americano. Caso contrário, a maior parte da sua população estaria comendo grama até hoje. E isso, por óbvio, não invalida a competência chinesa, e, por tabela, de boa parte dos asiáticos, em trilharem o caminho do desenvolvimento.
Maior abertura ou não do mercado, depende dos interesses dos países envolvidos.
Esse negócio de apontar o dedo para os americanos, faz parte do viés ideológico e do jogo de conveniências. O resto é conversa pra boi dormir.
😏
''Conversa pra boi dormir'',adoro essa expressão,rs.
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