sábado, 18 de maio de 2024

Luiz Gonzaga Belluzzo - Trombadas da desglobalização

CartaCapital

O protagonismo da grande empresa e a relação de gato e rato entre protecionismo e livre-comércio continuam a dar o tom na economia internacional

Em sua edição de segunda-feira 13 de maio, o jornal Valor apresenta um artigo de ­Assis Moreira. Empenhado em advertir os leitores para o recrudescimento do conflito entre os espaços econômicos nacionais e o retrocesso da globalização, o autor abre a matéria dedilhando os acordes sensíveis dos desarranjos em curso:

“A taxação adicional dos EUA contra carros elétricos e outros produtos ambientais chineses, esperada para esta semana, será uma ilustração a mais da persistente erosão do sistema comercial e mais turbulências à frente nas trocas globais. Isso ocorre em meio à aceleração das transições ambientais e tecnológicas que estão mudando profundamente a forma como vivemos e produzimos”.

Peço licença aos leitores de nossa ­CartaCapital para reproduzir o que escrevi no livro Os Antecedentes da Tormenta.

O economista americano Michael ­Hudson no livro Trade, Development and Foreign Debt faz uma avaliação histórica e crítica das teorias do comércio e das finanças internacionais, desde os mercantilistas até os dias de hoje, com parada obrigatória em Adam Smith e David Ricardo. Ele divide as teorias em dois grandes grupos:

1. Aquelas que definem o sistema econômico internacional a partir de relações hierárquicas entre os Estados Nacionais, suas moedas, seus sistemas financeiros e suas empresas.

2. As que advogam a existência de um espaço homogêneo e “competitivo”, um campo aberto para o desenvolvimento dos negócios e das trocas.

Para Hudson, as palavras “protecionista” e “livre-cambista” são etiquetas ideológicas que ocultam as razões de fundo das divergências. O capitalismo realmente existente conta uma história mais ambígua do que aquela narrada pelos fundamentalistas – de um lado e de outro – a respeito do desenvolvimento das relações econômicas internacionais. Protecionismo e livre-cambismo convivem como cães e gatos. Brigam o tempo todo, mas são inseparáveis.

No fim do século XIX, no apogeu da ordem liberal burguesa, a expansão do comércio e das finanças internacionais estava fundada nas relações simbióticas entre o liberalismo da Inglaterra hegemônica e as políticas protecionistas de industrialização dos retardatários europeus e dos Estados Unidos.

Ao longo do tumultuado período encravado entre a Primeira Guerra Mundial e a vitória dos aliados em 1945, a fúria e a desordem dos mercados colocaram em risco as normas de convivência e os valores da ordem liberal capitalista. Já no fim do século 19, na esteira da Segunda Revolução Industrial, a ampliação da presença das massas trabalhadoras nas cidades e a conquista do sufrágio universal transformaram em problemas sociais fatos que antes eram considerados resultados da conduta irregular dos ­indivíduos. A ideia de desemprego como fenômeno social, produzido pela operação imperfeita de mecanismos econômicos, é muito recente. Ainda no crepúsculo do século 19, o desemprego era tomado como vagabundagem, inabilitação ou simples má sorte.

O colapso da ordem liberal foi acompanhado de instabilidades financeiras, monetárias e cambiais devastadoras, transmitidas por meio dos circuitos financeiros e comerciais que articulavam as economias nacionais. Esse intervalo histórico foi marcado por uma reversão brutal das convenções e das concepções que haviam prevalecido no mundo do liberalismo comercial inglês regulado pelo padrão-ouro, ou seja, pela hegemonia da libra.

A defesa do espaço econômico e social das nações ganhou preeminência sobre as propaladas vantagens do livre-comércio. O avanço do protecionismo amparado em elevações de tarifas e desvalorizações competitivas tornou-se o esporte predileto dos governos, dos empresários e dos sindicatos. Os países envolvidos tratavam de despejar o desemprego de máquinas e homens no território do vizinho.

Na ausência de uma coordenação global, o nacionalismo econômico desvairado promoveu a contração do comércio internacional. Os países com maior abertura ao intercâmbio externo de serviços e mercadorias sofreram mais com a contração do comércio. As grandes economias tiveram melhor desempenho com a busca da autarquia. Mas o conjunto da obra foi desastroso.

A degradação da ordem liberal legitimou as aventuras totalitárias à esquerda e à direita

Não por acaso, na esfera política, a degradação da ordem liberal legitimou as aventuras totalitárias à esquerda e à direita. O coletivismo dos anos 30 era isso mesmo: um fenômeno regressivo promovido pela dissolução dos nexos sociais regulados pelos mercados. A crise realizou a proeza de explicitar a violência essencial que espreita a sociedade quando o indivíduo livre é lançado na liberdade desamparada. Nesse abismo sem fundo germina a hostilidade em relação ao “outro”: primeiro as importações, depois o imigrante, o estrangeiro, para culminar na eliminação da diferença sob qualquer forma. Nas profundezas da crise, é necessário eliminar todas as diferenças e mergulhar naquilo que é absolutamente semelhante, a totalidade uterina e intolerante da massa informe e manipulável.

Na posteridade da Segunda Guerra Mundial, a concorrência entre as empresas transnacionais da tríade desenvolvida (Estados Unidos, Japão e Eurolândia) determinou a reconfiguração da geoeconomia global. A transnacionalização da grande empresa – acompanhada da ampliação e da reorientação dos fluxos de comércio – promoveu o investimento “cruzado” nos mercados dos países industrializados e suscitou a redistribuição geográfica da produção manufatureira para a periferia.

A “metástase” da grande empresa ganhou força na década de 90 e, desde então, concentrou o investimento industrial na China e na Ásia emergente.

A China fez a diferença. Sua “competitividade” é crescente tanto nos mercados menos qualificados como, em ritmo acelerado, nos de tecnologia mais sofisticada. Torna-se grande receptor (incluída a intermediação das praças de Hong Kong e Cingapura) do investimento direto norte-americano e, ao mesmo tempo, ganha participação crescente no mercado de bens finais, peças e componentes dos Estados Unidos. Simultaneamente, os chineses sustentam a continuada elevação da taxa de acumulação de capital e a rápida graduação tecnológica de suas exportações.

Vou encerrar com um parágrafo da matéria de primeira página da edição do ­Financial Times de 14 de maio: “A administração Biden está aumentando drasticamente as tarifas sobre as importações provenientes da China, incluindo veículos elétricos, baterias e semicondutores, num esforço para proteger os empregos nos EUA antes das eleições de novembro. A Casa Branca disse que a ação foi ‘cuidadosamente direcionada a setores estratégicos’ que também incluíam alumínio e aço, minerais críticos, células solares, guindastes portuários e produtos médicos”. •

Publicado na edição n° 1311 de CartaCapital, em 22 de maio de 2024.

3 comentários:

Daniel disse...

Excelente! Há alguns anos os EUA pressionavam o Brasil e a China pra abrirem seus mercados. Hoje, os EUA tentam de várias maneiras fechar seus mercados pros produtos chineses e brasileiros... Liberalismo só quando interessa pros EUA ou pra Europa!

Mais um amador disse...

Todos os países possuem interesses e apostam suas fichas em suas vantagens comparativas. A depender do contexto, podem ter mais ou menos poder de barganha em relação aos seus " aliados " de ocasião ou maiores competidores.
A China soube utilizar-se de suas vantagens ao permitir a entrada de uma série de empresas no país. Da mesma forma, como qualquer outro país que se tornou potência, passou por uma cruel fase de " acumulação primitiva de capitais " explorando ao máximo a maior parte da mão de obra do país. Hoje colhe os frutos de ter se " associado " ao capital internacional, especialmente o americano. Caso contrário, a maior parte da sua população estaria comendo grama até hoje. E isso, por óbvio, não invalida a competência chinesa, e, por tabela, de boa parte dos asiáticos, em trilharem o caminho do desenvolvimento.
Maior abertura ou não do mercado, depende dos interesses dos países envolvidos.
Esse negócio de apontar o dedo para os americanos, faz parte do viés ideológico e do jogo de conveniências. O resto é conversa pra boi dormir.

😏

ADEMAR AMANCIO disse...

''Conversa pra boi dormir'',adoro essa expressão,rs.