O Globo
Há um oportunismo político nos ataques à
cultura e à educação
A cultura e a educação voltaram a ser
atacadas pela direita. De novo, são coisas de “comunistas”. Desde o final da
ditadura, artista ou professor eram categorias profissionais respeitáveis, do
tipo papai e mamãe, vistas como atores da boa civilização. Sugeria ser um
caminho para o Brasil deixar de apenas exportar commodities, sair enfim de seu
estágio extrativista. O advento do bolsonarismo, somado às redes evangélicas e
CACs, em vez de perseguir seus milicianos de estimação, criminalizou a turma do Zeca
Pagodinho e do professor Pasquale.
Mãos ao alto. Aqui se faz, aqui se paga.
O fracasso do “Jesus in Rio”, com aquelas
parcas almas desassistidas em Copacabana,
foi seguido pela notícia dos golpes (!) na venda on-line do perfume da
Michelle.
A democracia, que deve ser um sistema para
não perturbar o cidadão e deixá-lo na santa paz do Senhor, passou a ser no
Brasil uma luta antiquada entre o sagrado e o profano. A terra de Leila Diniz,
secular ma non troppo, tornou-se uma vitrine de grifes religiosas expostas nas
redes. Tal e qual a Saara carioca, gritam atrás de público para oferecer seus
produtos como quem negocia marcas de chinelos chineses:
— Qual Deus o senhor prefere? O mais cruel do
Velho Testamento? Ou o mais bondoso do release 2.0?
O Brasil já teve melhores teólogos.
Fui criado ouvindo a vovó Stella Barros
vendendo na televisão pacotes para a Disney, agora meus filhos perguntam se o
Mickey é de esquerda. Já pensou na Minnie como pastora? Ainda tenho de
responder a eles por que a Janja,
apenas primeira-dama, emite notas oficiais sobre a querela Xandão x Musk.
(Também recebo releases de suas audiências com diversos ministros! A saudosa
Ruth Cardoso criou o que é hoje o Bolsa Família,
com Vilmar Faria, e não precisou “ressignificar” nada).
Tudo errado: um pastor disputa a atenção do
vendedor de coco sob o sol de domingo, e uma prefeita no interior de Santa Catarina (onde
mais ?) queima livros infantis na hora do expediente. No Rio Grande do
Sul a obra delicada de Jeferson Tenório é designada como subversiva. O
que tal barnabé diz sobre os parricídios do Velho Testamento?
A vida já foi menos injusta.
Dias atrás, ao limpar meus livros na estante,
dei com “Artaud e o teatro”, um estudo clássico de Alain Virmaux. Não sei se
Heleno o estudou na academia militar, mas Antonin Artaud saiu brigado do grupo
surrealista por não concordar com as diretrizes autoritárias emitidas por André
Breton. O palco moderno passa pelo dramaturgo e ator francês, cujo conceito do
teatro da crueldade influenciou brasileiros como o grande Zé Celso Martinez. No
caso, contava eu, a vida era melhor porque a obra de Virmaux foi patrocinada
pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, quando o Brasil vivia sob a
ditadura do general Ernesto
Geisel. No mesmo período, a estatal Embrafilme bancou “Pra frente, Brasil”,
de Roberto Farias, uma das mais contundentes denúncias da tortura nos tempos
sombrios de exceção.
Não é vida que segue, porque, se a Junta
Militar criou a Embrafilme e Geisel a Funarte, deputados bolsonaristas em São
Paulo agora aprovaram a criação de uma CPI para investigar a TV Cultura. O
objeto: é uma programação de esquerda! De onde estiverem, as almas bondosas de
Rolando Boldrin e Inezita Barroso cantarão. O próprio governador Tarcísio de
Freitas já declarou que não há sentido na malsinação. A CPI deverá subir no
telhado, mas a ação reafirma o olhar tosco da extrema direita sobre a cultura e
a educação. E como pratica o patrimonialismo sem medo. A TV Cultura pertence à
Fundação Padre Anchieta, não ao governo estadual. Ao contrário da EBC, tem
independência editorial e ganhou prêmios internacionais por seus programas.
Grande parte, se não a maioria das
instituições culturais e científicas, surgiu sob administrações de direita ou
sob atos de regimes ditatoriais. A burguesia paulista conservadora (e
esclarecida) criou a Universidade de São Paulo e a Fundação de Amparo à
Pesquisa. Getúlio
Vargas abriu o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico.
Há um oportunismo político nos ataques à
cultura e à educação. No momento, partem de franjas extremistas do bolsonarismo
e das redes evangélicas, de olho nos likes e engajamentos. Um pessoal sem
critério. Estão aliados a Musk, mas escondem de seus seguidores o vídeo em que
o bilionário aparece numa entrevista fumando maconha.
A vida volta a ser engraçada.
O mundo artístico sempre me fascinou,os crentes não suportam,sei.
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