Folha de S. Paulo
No Brasil, estamos vendo esse jogo ser jogado
desde 2018
Muitos estão surpresos e indignados com a
nova inundação de fake news que
se seguiu à tragédia decorrente das chuvas no Rio
Grande do Sul. Têm razão na sua indignação, mas não deveriam estar
surpresos. O "novo normal", como se diz por aí, é ubi crisis, ibi
fake news.
O latim é de brincadeira, mas expressa um
fato verdadeiro: onde houver crise —situações em que surgem grandes incertezas
e angústias quanto ao presente e ao futuro comum do país e das pessoas— vai
haver fake news.
Vemos esse jogo sendo jogado no Brasil desde 2018. Se a crise for política, fake news aparecerão para aumentar o sentimento de incerteza, crispar os ânimos e recrutar militantes e eleitores pelo medo e pelo ódio. Se for de saúde pública, fake news surgirão como uma infecção oportunista em um corpo social já debilitado a fim de disseminar mais confusão, aflição e medo, convenientemente aproveitados para fins políticos.
Por que diante de uma tragédia natural não
teríamos também uma onda de disseminação de falsas informações a explorar as
angústias, as desconfianças e a polarização já instaladas e faturar
politicamente com isso?
As facções políticas estão nesses dias
empenhadas em vender a ideia de que Lula ou Eduardo Leite são culpados pela
crise ou não estão interessados em minorar os seus efeitos. Ou que a população
civil gaúcha está ao deus-dará, contando apenas com as próprias forças na
ausência do Estado e suas instituições. Ou ainda que as doações de voluntários
não chegam ao destino por inépcia ou má-fé das autoridades. O contexto é a
única novidade aqui, a atitude e o roteiro são bem conhecidos.
Essa simbiose entre informação maliciosa e
crises já tinha sido fartamente documentada desde quando a primeira ainda não
se chamava fake news e atendia pelo prosaico nome de boataria. Não é à toa que
os primeiros estudos de psicologia e sociologia do boato são de 1935, no
contexto de um terremoto na Índia; a segunda leva de estudos, que tornou a
boataria um objeto acadêmico relevante, aconteceu durante a 2ª Guerra Mundial.
Confusão, incerteza e ambiguidade, dizem os
especialistas, são a condição necessária para que boatos possam prosperar
socialmente; mas como a boataria se alimenta delas, trabalham para que se
mantenham constantes e perdurem.
Fake news são os boatos da era digital. São,
portanto, mensagens com alcance, velocidade de disseminação e capilaridade
jamais vistos. Mas são também um recurso importante para esta forma de
propaganda que está mais forte do que nunca: a propaganda suja.
Trata-se de um tipo de comunicação
estratégica, digital e inescrupulosa, cuja meta é dirigir a opinião, formar e
orientar os humores e sentimentos da sociedade, influenciar atitudes e
comportamento. São o pão de cada dia de forças políticas radicais, desestabilizadoras,
altamente empenhadas em se impor rapidamente no sistema político.
E que não se importam de manipular a opinião
pública ou educar os que os seguem com mentiras, parcialidades, distorções e
meias-verdades. Tudo pode ser usado, até a verdade, desde que atenda aos
propósitos da propaganda: construir um adversário, mobilizar o ódio contra ele,
criar uma identidade de grupo por contraste ao inimigo, desmoralizar e promover
a desagregação do antagonista.
Fake news, teorias da conspiração, opinião
política enviesada, informações de fontes partidárias e até reportagens
produzidas pelo jornalismo de
qualidade, tudo serve às necessidades da guerrilha de comunicação digital em
que se disputa a condução das massas em períodos de crises sociais, morais e
políticas. Esses boatos, com diferentes níveis de falsificação e fraude, são
amalgamados com relatos plausíveis para preencher as necessidades que grupos
políticos têm de levar as pessoas a pensar, imaginar, temer e acreditar em
determinadas coisas.
Por isso é tão complicado quando se espera
restaurar uma comunicação justa e íntegra isolando as falsificações do conjunto
da comunicação política, ou simplesmente mandando-se a polícia contra fake
news. Não sou contra minimizar danos ou punir grandes falsários e traficantes
de falsa informação, mas é realista admitir que, por mais pesado que seja o
braço da Justiça e mais efetiva que seja a refutação das falsas notícias, isso
não tem impedido que a propaganda digital inescrupulosa prospere e que novas ondas
de fake news surjam na próxima crise.
Talvez fake news e a guerrilha de informação
sejam uma condição inevitável nas novas sociedades digitais. Não é destino ou
determinismo, mas é importante manter esperanças ajustadas à realidade.
Pois é!
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