sábado, 1 de junho de 2024

Eduardo Affonso - A vingança de Machado

O Globo

Escritor continua moderno depois de os modernistas terem saído de moda. Não para de surpreender velhos leitores

Em 2023, a Fuvest decidiu deixar na geladeira, por três anos, os escritores que portassem (ou tivessem portado) cromossomos Y. O x da questão para estar na lista de autores a ser lidos para o vestibular não era o gênero literário, mas o biológico. Saíram Carlos Drummond e Machado de Assis, entre outros, e entraram, entre outras, Djaimilia Pereira de Almeida e Conceição Evaristo.

Num país onde as escolas tratam a leitura (e a literatura) a pontapé (vide os resultados do Pisa), os livros indicados para o vestibular costumam ser o primeiro contato dos futuros universitários com a obra (ou pelo menos um livro inteiro) de autores fundamentais —caso de Machado e Drummond. (Pausa para um flashback: fui apresentado a Osman Lins e Ivan Ângelo, aos contos de aprendiz de Drummond e ao narrador além-túmulo de Machado nas leituras obrigatórias, em 1976. Obrigado, UFMG!)

Escantear nosso maior escritor não é privilégio de fundações progressistas ou influenciadores digitais, como Felipe Neto (“Não entendia direito, era cheio de palavras que eu não sabia o que significavam. (...). Só fui enxergar a genialidade de Machado aos 33 anos, quando decidi ler pela terceira vez”). Guimarães Rosa anotou, nos seus diários:

— Não pretendo mais lê-lo, por vários motivos: acho-o antipático de estilo, cheio de atitudes para “embasbacar o indígena”; lança mão de artifícios baratos, querendo forçar a nota da originalidade; anda sempre no mesmo trote pernóstico, o que torna tediosa a sua leitura. (...) Quanto às ideias, nada mais que uma desoladora dissecação do egoísmo, e, o que é pior, da mais desprezível forma do egoísmo: o egoísmo dos introvertidos inteligentes. Bem, basta, chega de Machado de Assis.

O jovem Drummond precisou exorcizá-lo:

— Amo tal escritor patrício do século XIX, pela magia irreprimível de seu estilo e pela genuína aristocracia de seu pensamento. Mas, se considerar que este escritor é um desvio na orientação que deve seguir a mentalidade de meu país, para a qual um bom estilo é o mais vicioso dos dons, e a aristocracia um refinamento ainda impossível e indesejável, que devo fazer? A resposta é clara e reta: repudiá-lo.

Mais tarde rendeu-se a ele, num poema: “Todos os cemitérios se parecem,/e não pousas em nenhum deles, mas onde a dúvida/apalpa o mármore da verdade, a descobrir/a fenda necessária;/onde o diabo joga dama com o destino,/estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro,/que revolves em mim tantos enigmas.”

Mulato e inefável, na pele e no estilo, foi embranquecido por seus contemporâneos (é descrito como branco no atestado de óbito), e a maré identitária o fez preto retinto. Continua moderno depois de os modernistas terem saído de moda. Não para de surpreender velhos leitores e de assombrar os novos. Com a tradução de “Memórias póstumas”, feita por Flora Thomson-DeVeaux, Machado está, em 2024, na lista dos latino-americanos mais vendidos na Amazon, ao lado de García Márquez, Jorge Luis Borges, Octavio Paz, Julio Cortázar e Mario Vargas Llosa — três deles ganhadores do Nobel de Literatura, só um nascido antes de ele ter ido estudar a geologia dos campos santos.

Não convém subestimar os poderes de um bruxo. Ainda mais se ele já estiver morto há mais de cem anos — e escrevendo cada vez melhor.

 

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