segunda-feira, 3 de junho de 2024

Fernando Gabeira - Não vendam nossas praias

O Globo

Com as mudanças climáticas, as áreas marinhas precisam ser ampliadas, e não entregues à especulação

Os senadores garantem que não querem privatizar as praias. Será? A PEC que tentam votar retira da União a propriedade exclusiva não só de praias, mas também de uma faixa de terra chamada “terrenos de marinha”, uma área de 33 metros na margem de rios, lagos e contorno das ilhas.

Ao mesmo tempo que nos garantem que são bonzinhos, empreendimentos como os da empresa Due, associada ao jogador Neymar, anunciam a criação de um Caribe brasileiro, um conjunto de empreendimentos imobiliários numa região de 100 quilômetros entre Pernambuco e Alagoas.

A ideia de privatizar existe noutros países. Mas não é nossa praia. A praia é o tipo de espaço de lazer essencial para os brasileiros, algo muito importante na definição do Rio e na integração de suas regiões urbanas.

Outro aspecto que torna a medida temerária, eu diria suicida, é o fato de estarmos em período de mudanças climáticas. Uma das consequências é a elevação do nível dos mares, algo que considero irreversível, uma vez que as geleiras já começam a derreter.

Quem tiver dúvida do poder do mar precisa visitar a praia de Atafona, no norte do Estado do Rio. Foi destruída completamente. O mar avança em Pernambuco (Boa Viagem, Paulista, Jaboatão) e provoca mudanças na Ilha de Itamaracá, ao lado do forte construído pelos holandeses. Em muitos casos, como em Santa Catarina, não podemos falar apenas de avanço do mar, mas sim de uma resposta à própria especulação imobiliária.

A lei que garante a propriedade da União sobre os terrenos de marinha foi baseada na maré de 1831. Imagino que essa referência talvez não seja mais tão segura nos tempos de aquecimento global. Isso quer dizer que as áreas marinhas precisam ser ampliadas, e não entregues à especulação.

Um dos argumentos do senador Flávio Bolsonaro, relator da emenda constitucional que privatiza as praias, é que pobres como os habitantes da comunidade da Maré, no Rio, virarão proprietários. Mas a proposta nunca pensou nos pobres, apenas basicamente nas grandes empresas imobiliárias.

Logo no começo da pandemia, fui a Fernando de Noronha exatamente para colher a opinião dos moradores contra outro projeto do próprio Flávio Bolsonaro. Ele queria abrir a ilha para os cruzeiros internacionais, inundá-la de turistas estrangeiros, sem preocupação com a ausência de estrutura. Cheguei a concluir o programa com muitos depoimentos contrários à invasão dos cruzeiros, mas a pandemia acabou resolvendo o problema à sua maneira.

Os Bolsonaros parecem ter um Caribe na cabeça, sempre tentando materializá-lo, ora em Angra, ora em Noronha, ora no Nordeste. Esse avanço da especulação imobiliária nos dá a possibilidade de discutir a importância dos oceanos nas mudanças climáticas. O próprio El Niño, que pegou pesado neste ano, é um fenômeno que se forma na costa peruana.

Recentemente houve em Barcelona um encontro internacional para discutir a proteção aos oceanos. Numa das maiores conferências ambientais no fim do século passado, houve concordância de que a alteração das correntes marinhas seria o marco de que o aquecimento se tornaria irreversível.

Com tudo o que aprendi e estamos aprendendo em família, com uma filha dedicada aos oceanos, creio que não dramatizo ao avisar que o Brasil precisa ter cuidado com o mar, senão produzirá desastres que poderiam ser evitados, como tantos outros que produz em terra firme.

Em vez de privatizar praias, o país deveria ampliar suas áreas de proteção no próprio oceano, algo que a Austrália já começou a fazer. É preciso proteger os corais, evitar que o oceano se transforme numa lixeira e combater a pesca predatória, sobretudo de navios asiáticos que navegam com fábricas de enlatar peixes.

No momento em que o Rio Grande do Sul vive uma tragédia marcada por tempestades e ciclones, é preciso fazer ver aos congressistas que é hora de conter essa corrida por lucros fáceis, que só nos leva à autodestruição.

 

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