CartaCapital
Sempre a rever as próprias ideias, nunca a negar o que escreveu
Ainda mergulhado em minhas tristezas e
amarguras com a despedida de minha grande companheira de tantas batalhas, vou
oferecer ao leitor de CartaCapital um perfil mais afetivo do que
acadêmico de minha querida amiga Maria da
Conceição Tavares.
Na posteridade da animada festa que celebrou
seus 80 anos, na alegria que sempre mereceu dos amigos, Ceiça vestiu uma camisa
do Vasco e saiu por aí. Foi ao jogo contra a turma da camisa listrada
rubro-negra. Acompanhada do filho Bruno e do neto torceu e vibrou na
arquibancada. O time do Almirante não fez feio. Empatou jogando de igual
para igual com o adversário.
O leitor avisado imagina que, se nos gramados Conceição se conforma com empates, no campo das porfias intelectuais e políticas ela não tem piedade dos adversários. Posso garantir: é lenda. Os colegas e alunos que conviveram com a professora sabem que sua inteligência inquieta e irreverente não ataca o interlocutor, mesmo em casos terminais em que o cidadão apresenta graves sintomas de neoliberalismo ou de esquerdismo infantil.
Conceição buscava a particularidade
brasileira sem rejeitar os conceitos e os valores com aspirações à
universalidade
Posta a controvérsia, Conceição maneja os
argumentos mais complexos com uma velocidade bem acima da média permitida aos
comuns. Isso realimenta a lenda. Quando a coisa esquenta, a capacidade
analítica e de abstração da professora descarna o adversário. Seja ele Pedro,
João ou Francisco, a parte contrária transmuta-se em uma forma, um suporte das
ideias em disputa. Nada pessoal. Não raro ela toma a arma do contendor,
reordena os termos do argumento adversário e passa a acuar o cidadão em seu
próprio campo. Mas, se o adversário não tem molejo, corre sério risco de
terminar o torneio com a autoestima nos calcanhares ou, como muitas vezes
observei, com a soberba intelectual em frangalhos.
Quem está habituado às precariedades da razão
sabe que essa dialética peculiar é um método de fazer avançar o conhecimento e
a compreensão. Conheço poucos intelectuais tão desapegados de sua (autêntica ou
suposta) originalidade. Conceição concede e recebe contribuições com enorme
generosidade. Rejeita as duas mesquinharias em voga na cultura do narcisismo:
patentear as próprias ideias e esconder que a ideia é do outro. Por isso,
as “desavenças” teóricas e outras nem tanto que Conceição sustentou com seus amigos
e colegas terminaram em teses de mestrado e doutorado, artigos a quatro mãos e
livros publicados.
Conceição buscou a particularidade brasileira
sem rejeitar os conceitos e os valores com aspirações à universalidade,
nascidos da generalização das relações sociais, econômicas políticas e
culturais surgidas da Revolução Francesa e da Revolução Industrial. Essa
especificidade histórica não foi construída por meio da oposição abstrata e
rebarbativa entre modelos também abstratos, mas, sim, mediante a investigação
histórica, única forma de se dar o sopro de vida aos conceitos. A diversidade
de experiências, dentro do marco comum das aspirações à “modernidade”, foi o
emblema dos Trinta Anos Gloriosos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial.
Era possível, então, aos intelectuais das
nações emergentes – e Conceição estava entre eles – desenhar o espaço no qual
seriam construídas as utopias da igualdade e das liberdades, mediante a
“invenção” de seus próprios caminhos, numa emulação enriquecedora com os países
centrais. Assim, a convergência para os valores, formas de convivência e
instituições políticas nascidas do Iluminismo, das revoluções francesa e
norte-americana e da Revolução Industrial seria acompanhada da diferenciação de
estilos, da valorização das tradições culturais e do respeito aos processos
“locais” de integração social.
No Brasil, as forças ditas progressistas
foram impotentes para promover as reformas necessárias e levar adiante um
projeto de desenvolvimento nacional que deveria ultrapassar os marcos estritos
do mero crescimento econômico. O avanço da industrialização e da modernização
social e política foi travado pelas alianças políticas, regionais e de classe
que incorporaram os interesses mais retrógrados e reacionários ao bloco
desenvolvimentista. Essa circunstância explica a derrota, no imediato
pós-Guerra, das tendências políticas que almejavam maior autonomia nacional.
Tal pretensão não significava, como pretende o cosmopolitismo conservador, a
busca de uma economia autárquica.
Tinha mais tolerância com a desinformação dos
inocentes do que com a parolagem dos que se dedicam a enunciar banalidades
solenes
Conceição sempre insistiu na necessidade de
se manter sob o comando nacional – estatal ou privado – os setores decisivos do
ponto de vista financeiro e tecnológico, estratégicos no que respeita à
governança da economia e, sobretudo, nucleares para coordenar as decisões
de investimento. A repactuação continuada do compromisso com o cosmopolitismo
conservador foi, na verdade, responsável pela trajetória que levou o
capitalismo brasileiro aos impasses que o imobilizam atualmente: a deformação
sistemática da vontade popular, imposta por um sistema político oligárquico e
intrinsecamente antirrepublicano, a espantosa persistência da estrutura agrária
que está na origem da reprodução e ampliação das desigualdades sociais,
transportadas do campo para a cidade.
Egos inflados, esquerdistas festivos ou
cabeças quadradas devem guardar distância de Conceição. Nessa turma minha amiga
coleciona uma legião de ressentidos. É difícil convencer os atingidos, mas ela
não briga com os indivíduos. Muito menos pretende humilhar os antagonistas. As
aparências podem indicar o contrário, mas Conceição tem horror a veredictos
pessoais peremptórios e abomina moralistas e fuxiqueiros. Revela mais
tolerância com a desinformação e as tolices dos inocentes do que com a parolagem
dos que se dedicam a enunciar banalidades solenes, aliás, uma marca de nosso
tempo. Quem quiser arrumar encrenca da boa, encha a boca para falar obviedades
pretensiosas, como estas que encalacraram o País. Coisas do tipo: “É preciso
cortar gastos”.
Está todo o tempo criticando, brigando com as
ideias, as suas e as dos outros. Se há algum consolo para aqueles que
ficam ressabiados depois de uma refrega, saibam que as suas próprias ideias são
as primeiras a sofrer no corredor polonês de seu vezo crítico. Conceição pode
atravessar horas, dias, meses inteiros revendo e reformulando o que pensou e
falou. Mas não esquece o que escreveu.
Os interlocutores de Conceição têm
dificuldade, muitas vezes justificada, de compreender que ela não quer, em
qualquer sentido, derrotá-los no debate. Este seria um objetivo menor,
desprezível e mesquinho. Para ela, tanto melhor se o oponente demonstrar capacidade
de se defender e contra-atacar. A discussão esquenta, ela vai bater com mais
força. Mas esta é apenas uma forma peculiar de incorporar os argumentos do
outro. O contendor, tomado de perplexidade, recebe de volta as próprias razões
como se fossem as dela, em geral reapresentadas de maneira inventiva e
inovadora.
Temor reverencial, zero. O velho Raúl
Prebisch, Celso Furtado, Aníbal Pinto, mestres e amigos – figuras que admira e
respeita – ouviram poucas e boas. O velho Prebisch ficava um pouco incomodado,
Celso condescendente, mas Aníbal, o mais brasileiro dos chilenos, levava na
esportiva: “Esta es Maria Conce”. Num seminário, em 1981, no México, de
forma suave e didática, em inglês impecável – descontado o sotaque à Adolpho
Celli, o vilão de James Bond em Chantagem Atômica –, Conceição destruiu o modelo
de export-led growth que os economistas de Cambridge, às vésperas da crise da
dívida externa de 1982, tentavam vender ao governo mexicano. Os negócios
acadêmicos, diga-se, iam de vento em popa. O discípulo da professora Joan
Robinson, John Eatwell, hoje Lorde Eatwell, acuado e incapaz de responder às
objeções, partiu para a agressão verbal.
No dia seguinte, no café da manhã, foi obrigado por Nicholas Kaldor a pedir desculpas. Conceição, Luciano Coutinho, o argentino Arthuro O’Connel, Fernando Fajnzylber e este que vos fala ouviram Eatwell dizer, em inglês, sob os olhares vigilantes de Lorde Kaldor: “Fui tolo, arrogante e inconveniente”. Finalmente, Eatwell havia conseguido dizer alguma coisa útil naquele seminário. Conceição comia um sanduíche: “Deixa pra lá, vou cuidar de meu sanduíche”, respondeu em português, entre uma garfada e outra.
Publicado na edição n° 1315 de CartaCapital, em 19 de junho de 2024.
2 comentários:
Uma mulher admirável!
Daniel abre a boca e derruba quem elogia!
Admirável por defender o Cruzado ou por atacar o Real?
MAM
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