domingo, 28 de julho de 2024

Muniz Sodré - O acordão tem DNA

Folha de S. Paulo

Não tem nada a ver com o acerto da vida comum, é um tapa-olho na cara da democracia

Pesquisa recente, "a cara da democracia", revela uma surpreendente sobreposição de opiniões por parte de eleitores lulistas e bolsonaristas. Mas passa ao largo da máscara elitista dessa face, a pletora dos acordos secretos de poder que põem em segundo plano as leis republicanas. A imprensa tem chamado isso de "acordão": uma miríade de arranjos políticos, judiciários e empresariais para anular condenações, liberar fraudadores do erário, isentar generais do golpismo. São muitas as "sangrias" a se estancar.

Talvez a exposição moral disso tudo ainda surpreenda parte da consciência civil. Mas dificilmente o senso comum. Este já pressentia que a roubalheira seria contornada pela correlação de forças que dirige o sistema. Pressentimento é o que a academia chamaria de episteme do comum, isto é, o saber nascido da experiência dos costumes e do cotidiano nas ruas.

Uma dessas formas epistêmicas provém da comunidade afro-litúrgica, outro tipo de reflexão sobre o mundo. Nesse universo, palavra-chave é "acerto", a negociação inerente aos modos de coexistência entre os entes vivos do planeta. É o conceito de um popular acordo profundo, análogo ao desenvolvido pelo filósofo baiano João Carlos Salles, em torno de uma erudita "gramática dos acordos profundos" (em "Gatos, Peixes & Elefantes"). Tudo se pactua por regras de linguagem. Até mesmo a fé se define como confiança no acerto simbólico entre homens e divindades.

Vem daí o primado das regras, sempre concretas, partilhadas pelo comum. Deveria valer para toda a sociedade. Se leis não são mediadas por regras conhecidas de todos, decai por um lado a legitimidade democrática e cresce por outro o descrédito popular na administração da vida social.

Sem regras públicas, na surdina dos acordos fisiológicos em torno das emendas parlamentares, esquerda burocrático-partidária e direita são rótulos distintos apenas para fins eleitorais. Ambas fecham os olhos ao retorno do "petrolão" e à blindagem da Câmara, hoje sindicato do coronelismo eleitoral, na sua mutação em câmara de horrores.

Quanto ao cardinalato togado, se velou para evitar a erosão da fachada democrática do país pela vertigem fascista, agora, em meio a acordos conciliatórios e à promiscuidade das libações internacionais, zela mais pelo DNA patrimonialista da República do que pela Constituição.

Acordão não tem de fato nada a ver com o acerto simbólico da vida comum, é um tapa-olho na cara da democracia. Nem é sequer coisa nova: à imagem do besouro rola-bosta, que carrega às costas o mesmo velho entulho, é o eterno retorno do pacto extrativista, de que o povo sempre esteve excluído.

 

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