Folha de S. Paulo
Não tem nada a ver com o acerto da vida
comum, é um tapa-olho na cara da democracia
Pesquisa recente, "a cara da democracia", revela uma surpreendente sobreposição de opiniões por parte de eleitores lulistas e bolsonaristas. Mas passa ao largo da máscara elitista dessa face, a pletora dos acordos secretos de poder que põem em segundo plano as leis republicanas. A imprensa tem chamado isso de "acordão": uma miríade de arranjos políticos, judiciários e empresariais para anular condenações, liberar fraudadores do erário, isentar generais do golpismo. São muitas as "sangrias" a se estancar.
Talvez a exposição moral disso tudo ainda
surpreenda parte da consciência civil. Mas dificilmente o senso comum. Este já
pressentia que a roubalheira seria contornada pela correlação de forças que
dirige o sistema. Pressentimento é o que a academia chamaria de episteme do
comum, isto é, o saber nascido da experiência dos costumes e do cotidiano nas
ruas.
Uma dessas formas epistêmicas provém da
comunidade afro-litúrgica, outro tipo de reflexão sobre o mundo. Nesse
universo, palavra-chave é "acerto", a negociação inerente aos modos
de coexistência entre os entes vivos do planeta. É o conceito de um popular
acordo profundo, análogo ao desenvolvido pelo filósofo baiano João Carlos
Salles, em torno de uma erudita "gramática dos acordos profundos" (em
"Gatos, Peixes & Elefantes"). Tudo se pactua por regras de
linguagem. Até mesmo a fé se define como confiança no acerto simbólico entre
homens e divindades.
Vem daí o primado das regras, sempre
concretas, partilhadas pelo comum. Deveria valer para toda a sociedade. Se leis
não são mediadas por regras conhecidas de todos, decai por um lado a
legitimidade democrática e cresce por outro o descrédito popular na administração
da vida social.
Sem regras públicas, na surdina dos acordos
fisiológicos em torno das emendas parlamentares, esquerda
burocrático-partidária e direita são rótulos distintos apenas para fins
eleitorais. Ambas fecham os olhos ao retorno do "petrolão" e à
blindagem da Câmara, hoje sindicato do coronelismo eleitoral, na sua mutação em
câmara de horrores.
Quanto ao cardinalato togado, se velou para
evitar a erosão da fachada democrática do país pela vertigem fascista, agora,
em meio a acordos conciliatórios e à promiscuidade das libações internacionais,
zela mais pelo DNA patrimonialista da República do que pela Constituição.
Acordão não tem de fato nada a ver com o
acerto simbólico da vida comum, é um tapa-olho na cara da democracia.
Nem é sequer coisa nova: à imagem do besouro rola-bosta, que carrega às costas
o mesmo velho entulho, é o eterno retorno do pacto extrativista, de que o povo
sempre esteve excluído.
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