quinta-feira, 11 de julho de 2024

Paulo Fábio Dantas Neto* - A mensagem tricolor da República francesa

Na última década do século passado, Krzysztof Kieślowski, diretor de cinema polonês, brindou-nos com sua “Trilogia das cores”, uma sequência de três filmes (“A liberdade é azul”; “A  igualdade é branca”; “A fraternidade é vermelha”), alusiva à simbologia das cores da bandeira da França. Em linguagem metafórica, ele dramatizou sua percepção da experiência contemporânea com os valores constituintes do lema da revolução francesa. O modo personalíssimo como o artista imaginou a migração desses valores do universo das crenças políticas para o de relações interpessoais socialmente condicionadas não permite um uso direto de suas metáforas num comentário político, a não ser que o comentarista confesse, de saída, uma mera percepção desejosa, talvez mesmo idiossincrática. É o que faço agora, acrescentando que ela foi adquirida em contato leigo e já distante no tempo com aqueles filmes.

Das lembranças de tê-la visto, lá atrás, e do fato de agora ter buscado ler breves comentários sobre a trilogia, fixei-me numa hipótese de interpretação (decerto uma entre inúmeras que circularam à época): a de que, nos três filmes, as metáforas sugerem a impossibilidade de aproximação a esses ideais, caso desejados em estado de pureza ou plenitude. Tentativas levariam a experiências com obstáculos embaraçadores de sua realização. A liberdade (azul), diante de perdas e seus danos, não seria possível em isolamento face ao mundo; a igualdade (branca), perante diferenças de condição, não seria praticável sem os diferentes experimentarem, no sentimento, a condição do outro; a fraternidade (vermelha), na presença de sentimentos de solidão, ganharia sentido em relações insólitas, condutoras à compreensão compassiva de paralelos também não previstos entre dores do outro e as suas próprias.

A ativação da memória dessa trilogia cinematográfica virou propósito depois que recebi de amigos uma profusão de textos, sons e imagens sobre o segundo turno das eleições francesas. No farto material, aparece muito em foco a figura de Jean-Luc Mélenchon, o líder da “França insubmissa”, maior agrupamento da recém-formada Nova Frente Popular, a coligação da esquerda, que foi a mais votada naquele segundo turno. Conjunto de frases solteiras do personagem (ou a ele atribuídas), retiradas de discursos de improviso - atuais e antigos – ou de declarações instantâneas, assim como vídeos politicamente orientados, a favor e contra, editados para aclamar o líder ou assustar a plateia. No balaio, uma imagem sonorizada em que ele está puxando e regendo um coro cantante do hino da Primeira Internacional. A imagem de multidão sugere que o contexto é a comemoração da vitória e que ela, a multidão recém saída das urnas, cantava o hino revolucionário com o mesmo ardor do orador. 

A insegurança corrente para com a veracidade de quase tudo e um trecho de conteúdo anacrônico da fala do orador levaram a uma investigação, em conjunto com o amigo que me havia enviado o vídeo. Ficamos então sabendo que o fato se deu em 2017 e que o evento então celebrava o quase sesquicentenário da Comuna de Paris. Canção, coro e maestro são reais, mas o contexto sugerido não era veraz. A insinuação funcionou porque o vídeo foi exumado no domingo e estava no X de Mélenchon.  Tiro no pé ou não, era óbvia propaganda de uma suposta “contemporaneidade do não coetâneo”.

A real grandeza das luzes de uma nova estrela

Tudo isso direciona aquele político ao destino de celebridades que já não podem controlar a apropriação imagética de suas ideias por vários agentes, com distintas intenções e para diversos fins. Ao analista convencional (analógico?) que quer analisar estratégias de um ator político, falta o discurso estruturado e abrangente, com começo, meio e fim - por escrito, de preferência ou, ao menos, em vídeo integral, veiculado em fontes isentas ou idôneas.  Na falta da imprescindível matéria prima autêntica, o jeito é usar lupa genérica e interpretar a partir do jeito geral da coisa. O discurso triunfante, comum aos fragmentos de fala, sugere uma hiperbólica celebração de uma conquista eleitoral contingente, comunicada como prenúncio de uma ruptura política e civilizatória. Esta seria uma necessidade social pura e plena, termos incompatíveis com a trilogia de Kieślowski, tal como aqui interpretada.

É possível realçar fragmentos libertários, anunciadores de um tempo de alívio de tenazes da sociedade do trabalho para semear uma humanidade nova, ecologicamente apaziguada. Conteúdo oposto ao discurso do libertário de direita, no qual o de esquerda censura o desejo de liberdade irrestrita do indivíduo despótico de prevalecer numa competição de egos que premiará os mais fortes. Em lugar disso propõe que a felicidade humana seja alcançada através de um projeto de ação coletiva. Felicidade pura e plena, a humanidade liberta e ligada pela amizade. Aos inimigos – desumanos - a lei. Se é de liberdade, igualdade e fraternidade que se fala, experimentos antipolíticos inspirados por ambas as modalidades de atitude libertária tiveram resultados positivos pífios (para dizer o mínimo e nem aludir a perversões), se comparados, no território da mútua imperfeição, a obtidos em sociedades que escolheram democracias representativas, assumidamente incapazes de prometer pureza e plenitude.

De outro lado, no mesmo discurso triunfante há fragmentos autocráticos que o fizeram merecer, em algum lugar, a benévola qualificação de bravo. Encenam um ultimato dirigido ao presidente Macron, para que ele admita a derrota e, portanto, curve-se à vontade do soberano. O modo imperativo mostra a convicção do líder emergente de que uma interação política complexa entre atores políticos que horas antes haviam se dirigido aos eleitores como aliados para isolar o perigo autocrático da extrema-direita é questão de causa e efeito, a ser resolvida sem tempo e lugar para nuances. Enquanto lia isso, recebi de presente, do mesmo amigo que me enviara o vídeo extemporâneo, uma letra de música do poeta Cacaso. Um dos versos é título de uma faixa e de um álbum inteiro de Francis Hime: “se porém fosse portanto”. Somou-se à trilogia de Kieślowski, servindo como outra luva luxuosa para vestir este comentário.

Aquele simbolismo do político regendo o hino é forte, em 2017 ou agora. Expressa a proposição ideológica (que por ora não parece inspirar uma vontade política da frente de esquerda, em seu conjunto) de substituir as franças histórica e atual por uma república alternativa, cujo hino não seria a Marselhesa e cuja bandeira deixaria, virtualmente, de ser tricolor e nacional. A alusão musical à Comuna de Paris (1871) pode ser colocada na conta de uma emoção celebrativa no presente que homenageia um passado morto e, assim, a cena ser vista como metáfora catártica, mas politicamente inocente, como intenção, embora facilmente manipulável por uma ultradireita bem viva, nas intenções e nos gestos. 

A dimensão política que insiste em se mostrar ao lado da aparente inocência é o fato de a catarse não ter sido coisa de plateia, mas proveniente do palco onde se apresentava um líder. E sobra ainda lugar para notar o paradoxo entre a sonora mensagem internacionalista e o apelo nacionalista que compõe a atitude política antiglobalista daquela parte da esquerda francesa. Nota dissonante que, como um fantasma, nunca se afastou da alma dividida de movimentos, partidos e estados que, seja na antiga Rússia, seja, ainda hoje, na nossa América Latina, ou numa “outra” Europa, insubmissa e de olhos fixos no levante, invocam Marx como antagônico à cultura democrática transmitida pela política moderna.

Supor absoluta e classista uma maioria eleitoral conquistada em contexto de pluralismo funciona como insubmissão a este e como insinuação de uma França com bandeira de uma só cor. Metáfora de sentido denotador de uma pretensão hegemônica, desafiadora da mensagem inequívoca dos eleitores franceses, que recusaram dar a qualquer força política, em particular, uma maioria sequer próxima à maioria política que a Constituição do país estipula como necessária para que um governo atue sem risco de não confiança do Parlamento. A este a regra concede a prerrogativa de aceitar, ou não, um governo de maioria simples. O entendimento político é que decidirá se essa prerrogativa da maioria parlamentar - ou mesmo a do presidente da República de chamar a frente vitoriosa para formar o governo - será usada para aceitar ou recusar um governo minoritário de esquerda, caso o entendimento não produza uma maioria. No caso de aceitação de um governo minoritário na Assembleia, o presidente da República poderá convocar novas eleições, em um ano. Claro que no caso de a esquerda decidir por um governo minoritário, o bom senso e o compromisso com as regras, com a democracia e com a governabilidade mandam que o presidente aceite essa decisão, sem precisar curvar-se. Mas se um ano é pouco para uma força política dizer a que veio, pode ser uma eternidade para o país, se um governo parlamentar sem apoio parlamentar tiver que lidar com paralisia decisória e insatisfação social. Em contextos assim, o pavio do sistema semipresidencialista é mais curto que o do presidencialista. A esquerda, se estiver mesmo pronta e disposta a governar, será a primeira a ter interesse em poupar a França desse cenário.

A real grandeza da nova frente popular

Tudo isso está certamente em cálculos da esquerda vencedora nas urnas, sugerindo-lhe moderação. Mas transparece, nas falas iniciais de Mélenchon, o ânimo de quem parece ter conquistado maioria absoluta. O vencedor de fala invencível. Para medir até que ponto é só apelo retórico ou um programa voluntarista que se quer visionário, pois enxerga portantos em poréns, é preciso que também a plateia preste atenção em números da vitória da “França Insubmissa” e compreenda sua dupla relatividade, uma interna e outra externa ao conjunto da esquerda reunida na “Nova Frente Popular”.

A maioria é relativa, internamente, porque a “França Insubmissa” de Mélenchon expressa 40% da força parlamentar que a frente de esquerda conquistou nas urnas. Logo a seguir - com 32% dos 182 deputados que essa frente elegeu - vem o tradicional PS, partido de esquerda moderada, de inclinação social-democrata e alguma tradição europeísta. Com longa experiência de poder e chances de vir a ter um quadro seu como primeiro-ministro do governo a ser formado, o PS foi uma das duas forças que cresceram, nessas eleições, dentro da esquerda. A outra foi o partido dos ecologistas, que também poderá vir a indicar alguém para aquele cargo. Enquanto a FI estacionou, perdendo uma cadeira, ambas mais que dobraram o número de assentos que ocupam na composição atual da Assembleia. O PS sinaliza recuperação, após a queda livre sofrida em 2017. O peso parlamentar dos ecologistas também está se tornando ponderável (15 % da frente), com uma bancada três vezes maior que a do longevo e lendário PC, cuja representatividade recuou mais, como parte de um declínio sustentado no tempo.

É possível dizer, portanto (e aqui não existe porém), que se está diante de uma consorciação em equilíbrio de forças, viés de moderação e que, por isso, talvez esteja também em processo de negociação interna. Por mais que os holofotes ainda acendam sobre declarações de Mélenchon, parece provisória a sua condição de porta-voz do conjunto. A situação não facilita longa vida a arroubo hegemônico da força individualmente maior, sob pena de quebrar uma aliança muito recente, formada praticamente no improviso, para responder ao desafio da convocação precoce das eleições, pelo presidente Macron. Faz pouco tempo que as duas maiores forças hoje aliadas nessa frente estavam divididas quanto à questão do conflito Israel x Hamas e outros temas importantes do contexto europeu. A unidade recente é importante para todos e requer zelo pluralista dos que compartilham a vitória.

A maioria é ainda mais relativa, externamente, se medido o tamanho parlamentar da Frente Popular (32% da Assembleia). É uma esquerda só um pouco maior que aquela atuante na Câmara dos Deputados brasileira. O “Juntos”, coligação centrista de Macron, obteve 29% e a ultradireita 25%. Se observarmos, em vez dos assentos, os votos in natura, veremos que vieses do voto distrital em deputados, em dois turnos e com sistema de apuração majoritário situaram o peso parlamentar das coligações de centro e de esquerda em patamar acima do seu peso eleitoral, dando-se o contrário com os radicais de direita. Um governo resultante de um difícil entendimento pleno entre a esquerda e o centro alcançaria maioria segura de pouco mais de 60% dos votos parlamentares, representando, diretamente, cerca de 50% dos eleitores. Os números seriam talvez ainda mais problemáticos para a popularidade potencial do governo a ser formado se se pudesse descontar o fenômeno do “voto útil”, que terá funcionado mais contra a ultradireita. Mas não se compra pelo valor de face o alarde que a propaganda populista tem feito sobre isso. O voto útil também pode ter atuado (pesquisas já possivelmente no forno poderão confirmar ou desprezar essa conjectura) a favor dela. Caso de distritos em que uma candidatura de centro - colocada em terceiro lugar, no primeiro turno, com mais de 12,5% dos votos e, assim, classificada, pelas regras francesas, ao segundo turno - tenha sido retirada em favor de uma da esquerda, mas parte dos eleitores não seguiu o gesto e preferiu votar nos extremistas.

Uma cena e um script à espera de um novo ator

A distribuição equilibrada de peso parlamentar entre os dois campos políticos que, aliados no segundo turno, barraram o acesso da extrema-direita ao governo demonstra, claramente, que a esquerda, se lhe couber - como é esperado - formar um governo para conviver com o presidente, terá que optar entre compô-lo com parte do próprio centro de Macron, ou só com a minoria parlamentar de esquerda.

É compreensível que opte pelo segundo caminho, pois é extenso e intenso o seu contencioso com a política interna do presidente. Parece irrealista pensar que forças políticas da Frente Popular, mesmo as moderadas, renunciem a fazer oposição a Macron. Entrariam em contradição com a plataforma eleitoral que lhes deu a perspectiva institucional de formar um governo no sistema de poder compartilhado com o presidente. Mas no cenário com um governo minoritário torna-se, por suposto, ainda mais importante que o cargo de primeiro-ministro seja ocupado por uma liderança moderada, capaz, não só de unir a frente popular, como de estabelecer diálogo consistente e pragmático com o presidente e os demais blocos do Parlamento. Não é pouca coisa, ainda mais na presença de uma sociedade em fricção.

Para além de cálculos quantitativos - em si relevantes, por pragmatismo e por respeito às urnas – há o êxito pedagógico, pela atitude política e pelos resultados efetivos, do entendimento político entre esquerda e centro, que fez a aliança republicana promover, em uma semana, uma admirável reviravolta eleitoral. A remoção de situações de disputa triangular em centenas de distritos pela retirada, conforme a correlação de forças no local, de candidaturas de algum dos campos em favor do outro rebaixou a competitividade de candidatos de extrema-direita, sem enfraquecer algum dos polos democráticos. A resultante nacional de disputas distritais bipolares foi um triângulo quase equilátero na distribuição de mais de 80% dos assentos parlamentares, pela qual a extrema-direita acabou em terceiro lugar.

Dessa vez o chamado cordão sanitário contra o extremismo trabalhou em condições mais delicadas e gerou uma fragmentação mais acentuada do que a habitual em sistemas de voto majoritário, o que pode trazer mais dificuldade ao polo vencedor para montar um governo. Em contrapartida, o movimento unitário de grande política produziu efeito bloqueador do acesso da ultradireita ao governo sem impor uma bipolarização extrema, com anulação do centro. Nisso talvez haja êxito da estratégia de Macron de antecipar as eleições parlamentares, compensando o fato da votação da esquerda, no primejro turno, ter ido além da encomenda, mercê da sua unificação. O entendimento republicano entre esquerda e centro pode, se prosseguir na hora da montagem do novo governo (seja ele minoritário ou de ampla coalizão), evitar atitudes de confronto, como respostas de ambos os campos a esse efeito não previsto.

Mesmo com todas essas possibilidades que confesso não saber avaliar com precisão e de modo conclusivo, é evidente que a força eleitoral da direita radical não pode ser subestimada. Ela pode aumentar com o fracasso do governo de esquerda, daí ser racional o centro não bloquear seu caminho.  

No xadrez pós-eleitoral, Macron joga com as brancas

Requer-se de Macron uma capacidade de avaliação realista, de prospecção estratégica e uma flexibilidade tática equivalentes às que se requer da frente de esquerda. A análise precisa ter em conta que a sua manobra de antecipação das eleições (sobre a qual é precipitado já ter juízo formado quanto a acertos e equívocos incidentes sobre o futuro da República, do povo francês ou dele próprio), graças, no apagar das luzes, à aliança republicana aceita pela esquerda para pavimentar sua própria ascensão como alternativa ao extremismo populista, pode ter atenuado, mas não evitou uma forte derrota. Afinal, o seu campo político perdeu quase 80 assentos no parlamento. Reconhecer isso implica em fazer uma inflexão política ao centro, alguma espécie de revisão no deslizamento à direita que vem marcando seu governo de modo gradual, mas contínuo. Por isso cabe a imagem de que ele joga com as pedras brancas.

Espera-se que uma eventual inflexão inclua, objetivamente, disposição de alterar políticas presidenciais para estabelecer um ambiente propício a um entendimento. Se uma premissa óbvia é que com o agrupamento de Mélenchon é difícil ter conversa, ela só poderá ocorrer com esquerdas mais moderadas. Do ponto de vista de Macron, a opção de agregar ao bloco do atual primeiro-ministro, técnicos, ou mesmo os ecologistas em separado, para formar um governo minoritário de centro, contrariando a maioria das urnas numa eleição que teve 67% de participação, é risco político imenso. Seria truncar o jogo e assistir dois extremos, cada vez mais irresponsáveis, crescerem por fora.

Esquerda moderada para ser interlocutora real quer dizer PS e ecologistas juntos, não um ou outro. Se as duas agulhas ganharam balas, é com elas a conversa. Precisa ser respeitosa, porque não será fácil tirar o PS da oposição ao palácio presidencial. Pelo que se tem lido, o fundamental do contencioso desse partido com Macron está na política doméstica. Em política externa, pelo que se diz, o PS briga mais com Mélenchon do que com Macron. E a coisa pegaria mesmo é na reforma da previdência, grande fator da impopularidade do presidente, que ele procurou compensar (do ponto de vista eleitoral e da comunicação política) com uma política imigratória acusada de mimetizar politicamente a direita. Difícil supor entendimento positivo com os vencedores da eleição se essas duas políticas forem intocáveis.

Na reforma da previdência, Macron avançou a idade mínima de 62 para 64 anos, o PS quer reduzir para 60. Até que ponto argumentos do presidente são estruturais, sistêmicos (econômicos e administrativos) e até que ponto são plataforma política de um líder cuja base migrou, ao longo do tempo, do centro para a direita? Admito que não sei, nem adivinho. É possível que haja de tudo um pouco. Como em qualquer país, para saber é preciso conhecer a dinâmica demográfica da França, a situação fiscal do Estado e as condições de financiamento sustentável de políticas sociais que sejam tão importantes quanto a previdenciária. Tema para franceses bem informados, sobre o qual aqui é possível falar por hipóteses.

Se o estrutural é o que de fato comanda o argumento de Macron, então é melhor e mais responsável esquecer o acordo com a esquerda. A vitamina eleitoral recente não torna racional que ela altere o seu roteiro crítico. Nesse caso, restará ao presidente travar o bom combate, deixar a esquerda na oposição a si e coabitar com ela, numa relação a mais civilizada possível. Mesmo em presença de dissenso sobre políticas públicas, não perde sentido o consenso democrático sobre defesa das instituições e sobre métodos e procedimentos de interação política.  A tradição republicana ensina que divergências (mesmo as mais acirradas) sobre políticas públicas (mesmo as mais relevantes) não são argumentos para deslegitimar oponentes. Democratas de esquerda, centro e direita são seres vivos da democracia

Mas se a razão predominante da reforma da previdência de Macron é programática, para consolidar sua relação eleitoral com uma direita ideológica que ele quer disputar com a extrema-direita, então talvez caiba pensar em suspender a reforma para debater mais e se chegar a uma solução socialmente mais aceitável. Um meio termo que mantém por ora o status quo e pode levar o PS a colaborar. O duelo com a extrema-direita precisaria acontecer através do prolongamento da vida útil da aliança republicana.

Claro que Macron pode seguir outro caminho, que nem o de estadista comprometido com uma reforma estrutural a ponto de aceitar uma derrota eleitoral para quem a combater com mais eficácia, nem também o de político pragmático, que busca o centro, alia-se à esquerda para isolar a extrema-direita e planta um futuro social liberal para o centrismo, como terceira via entre esquerda e direita populistas, identidade inicial do movimento que ele fundou. O tal caminho distinto dos dois mencionados seria usar prerrogativas presidenciais para truncar o jogo que as urnas puseram em marcha, considerando ser possível manter sua inflexão à direita depois dos resultados de domingo. Fazer de conta que portanto é porém, uma espécie de oposto simétrico à atitude de Mélenchon querendo ver portanto onde há porém.

Para quem não nasceu nem vive na França, mas sente amor pela democracia como cidadão do mundo, o descarte de ambos os caminhos benignos para escolher o truque doméstico seria uma decepção, porque feita pelo chefe de uma nação que conta, num mundo em perigo. Nivelado a Mélenchon, na inflexibilidade política e na insubmissão ao recado pluralista das urnas, deixaria sem resposta, também, a mensagem cosmopolita da bandeira tricolor. Uma mensagem que a consciência democrática recebe interpretando cada faixa da bandeira pela gramática da convergência: liberdade em parceria, igualdade na diferença, fraternidade entre opostos. Tudo que extremismos abominam. 

*Cientista político e professor da UFBa.

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