Folha de S. Paulo
Não é hora de a corte recuar no exercício de
suas funções
Duas são as funções fundamentais de tribunais
e cortes constitucionais em regimes democráticos: habilitar a vontade da
maioria e ao mesmo tempo defender os direitos das minorias.
A função habilitadora da vontade da maioria
está associada à proteção das regras do jogo democrático. Para que a vontade da
maioria possa florescer, os canais institucionais de representação e
participação não podem estar obstruídos; as regras eleitorais devem assegurar
iguais oportunidades aos cidadãos; as eleições precisam ser conduzidas com
honestidade; o direito à informação, à liberdade de expressão e oposição devem
ser assegurados; por fim, os eleitos devem se conformar ao império da lei.
A função contramajoritária está, por sua vez, associada à defesa dos direitos essenciais de minorias —especialmente aquelas vulneráveis e historicamente discriminadas— em face de ataques de maiorias circunstanciais ou de governos arbitrários.
Cortes constitucionais se encontram bem
posicionadas para exercer essas funções que parecem contraditórias, mas são
complementares na defesa da democracia. Se o fundamento moral da democracia é a
igualdade de todas as pessoas, que merecem ser tratadas com igual respeito e
consideração, não seria democrático se a maioria pudesse usar o seu poder para
privar minorias vulneráveis de seus direitos ou mesmo para impedir futuras
maiorias de chegar ao poder.
Nesta semana, o Supremo Tribunal Federal (STF) fez
movimentos contraditórios no manejo dessas duas funções. No campo da
habilitação democrática, o ministro Flávio Dino reiterou
o entendimento da ministra Rosa Weber,
determinando ao Congresso Nacional que abra a caixa secreta das emendas
orçamentárias.
A maneira turva pela qual essas emendas têm
sido empregadas tanto fere o direito à informação, prejudicando o exercício do
voto consciente, como viola a igualdade de oportunidade na competição política
ao desequilibrar a competição entre os que se encontram entrincheirados no
poder e os que estão de fora.
A falta de transparência na aplicação desses
recursos também impede que se verifique se estão sendo empregados de acordo com
as regras da lei.
Na contramão dessa decisão habilitadora da
democracia, que deve ser aplaudida, o Supremo deu início a um controverso
processo de conciliação que fragiliza direitos de minorias. No caso, direitos
fundamentais dos povos indígenas.
Controverso porque abre processo de conciliação em torno de "direitos
inalienáveis", portanto direitos que por definição não podem ser objeto de
alienação ou troca. Controverso porque promove insegurança jurídica ao ignorar
recente decisão do Supremo que declarou inconstitucional o marco
temporal. Controverso porque seus procedimentos não atendem as
premissas básicas para realização de acordos com minorias culturais.
Controverso, entre outros motivos, porque promete ser concluído ainda que os
indígenas se afastem da mesa de negociação. Ora, como pode haver
"conciliação" sem a anuência dos legítimos interessados?
Tal como colocada em prática, essa
conciliação parece ser apenas mais uma "ideia fora de lugar", como
tantas outras empregadas ao longo da história para encobrir simples processos
de supressão de direitos. Brinquedo novo. Resposta velha.
Sem que o Supremo suspenda a eficácia da lei
que reintroduziu a tese do marco temporal e reformule os procedimentos dessa
controversa iniciativa, dificilmente angariará a confiança indispensável a
qualquer processo de conciliação.
As sucessivas crises políticas em que imergimos, agravadas por intensos ataques à Constituição e às suas instituições —em especial o Supremo—, expuseram a jurisdição constitucional brasileira ao oportunismo de diversos setores. Não é hora de o Supremo recuar no exercício de suas funções, sob o risco de ser devorado por quem imagina alimentar.
Sim.
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