O Globo
Nos 30 anos de 'Cidade Partida', um Rio que
não aparece na propaganda eleitoral
A ampla vantagem de Eduardo Paes nas
pesquisas esvaziou o interesse pela eleição para a Prefeitura do Rio. É pena,
porque os cariocas arriscam perder uma chance valiosa de discutir os problemas
da cidade. Na semana que passou, um seminário e um novo livro debateram os 30
anos do lançamento de “Cidade Partida”, de Zuenir Ventura. As conversas
iluminaram temas que não devem aparecer na propaganda eleitoral.
O best-seller de Zuenir descreveu uma cidade traumatizada pela violência e anestesiada pela desigualdade. Para produzi-lo, o jornalista frequentou por dez meses a favela de Vigário Geral, palco de uma chacina que matou 21 pessoas em agosto de 1993. Depois do banho de sangue, o autor acompanhou dois movimentos que ensaiaram uma reação à barbárie. O Viva Rio, que mobilizou classe média, empresários e meios de comunicação, e o movimento da comunidade de Vigário, que tentava projetar sua voz além dos becos da favela.
“Houve um momento em que parecia que ia dar
certo”, escreve o antropólogo Luiz Eduardo Soares, personagem do livro de
Zuenir. Ele relembra as mobilizações pela paz e observa que “todos pareciam
dispostos a conversar” para mudar os rumos da cidade. “Admito, fomos ingênuos”,
confessa. “O acordo sonhado não aconteceu. Não veio a trégua. Nem a
convergência.”
O antropólogo Rubem César Fernandes, líder do
Viva Rio, reforça a crônica das oportunidades perdidas. Em 2013, quando o
movimento fez 20 anos, ele chegou a declarar ao GLOBO que o Rio havia “saído do
buraco”. A cidade vibrava com a proximidade da Copa e da Olimpíada, e o governo
apresentava a UPP como solução para a segurança pública.
“Aí eu acho que a coisa desandou, primeiro
com o Sérgio Cabral e outros governantes sendo presos”, reflete Fernandes, em
entrevista para o novo livro. “A interpenetração entre crime organizado ao
quadrado e corrupção política derrubou os avanços do Rio. Não há mal que não
tenha remédio, mas as patologias se tornaram mais diversas e intratáveis na
última década”, sentencia.
Fundadora da ONG Redes da Maré, a
pesquisadora Eliana Sousa Silva relata seu desconforto inicial com o termo
“Cidade Partida”. “Mais do que uma cidade partida, o Rio é uma cidade
desigual”, defende. Criada na Nova Holanda, uma das 15 favelas da Maré, ela
sustenta que as políticas públicas precisam integrar em vez de segregar. “Não
podemos nos curvar a ser simplesmente um lugar pensado para os turistas, para
os ricos, lembrado por suas belezas naturais e pelo Cristo de braços abertos
para o lado privilegiado”, escreve.
O novo livro traz uma entrevista inédita de
Zuenir. Aos 93 anos, ele lembra como o espírito de repórter o levou a cruzar o
túnel em direção a Vigário Geral. “Era a curiosidade de um cidadão de conhecer
o outro lado da cidade”, explica. “O Rio sempre foi uma cidade que tem vozes
muito fortes, mas tem também outras vozes escondidas, que não apareciam. Então,
eu estava descobrindo outras vozes da cidade.”
Concordo.
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