O Globo
Na semana em que Brasília foi sufocada pela
fumaça das queimadas, um indígena foi morto no Mato Grosso do Sul. Os dois
fatos estão ligados pelo fio da História. O Brasil há 524 anos comete os crimes
com os quais foi inaugurado: queima a floresta e mata os indígenas. A morte de
Neri Kaiowá foi no dia 18, mas a tensão havia aumentado por vários
dias. Na semana anterior, o Cardeal Leonardo Steiner e a antropóloga Manuela
Carneiro da Cunha estavam lá, quando uma barreira de viaturas da Polícia
Militar cercou os indígenas. Na véspera, três pessoas haviam sido feridas. Uma
delas, uma mulher guarani teve seu joelho atingido por arma de fogo.
Em Brasília, um incêndio consumiu quase três mil hectares na Floresta Nacional, uma preciosa e bela unidade de conservação do Cerrado.O fogo que se alastra pelo Brasil é deliberado. Há 85 inquéritos abertos na Polícia Federal, mas pouco se sabe das motivações e dos criminosos. Quem esteve em Brasília sofreu nos olhos, no nariz, no pulmão, na garganta o peso da fumaça dos crimes ambientais que atingiram as reservas. Elas são oásis em pontos estratégicos de uma cidade que precisa desesperadamente de água e árvores.
Os três mil Guarani Kaiowá, da terra indígena
Nhanderu Marangatu, vivem uma história que é a cara do Brasil, nos seus piores
momentos. A terra já foi demarcada. Foi homologada por um decreto presidencial
de 2005, mas o então ministro Nelson Jobim concedeu aos fazendeiros uma
liminar, num mandado de segurança, suspendendo os efeitos do decreto, mas não o
decreto em si. Vinte anos não bastaram para que o STF decidisse. Recentemente a
Fazenda Barra, que se sobrepõe a um pedaço da terra indígena, entrou com uma
ação em Ponta Porã e o juiz determinou que a Polícia Militar fizesse a
segurança da propriedade. PM fazendo segurança privada. O pior é como essa
ordem está sendo cumprida, explica a defensora pública Daniele Osório.
– Antônio João é uma pequena cidade na
fronteira do Brasil com o Paraguai, a 400 quilômetros de Campo Grande.
Deslocaram na semana passada um efetivo enorme, com ônibus, caminhão, com tropa
de choque. Pagando diária para policial, alimentação, hospedagem, gasolina para
as viaturas. É muito fora do comum. Eles cercaram a Fazenda Barra e todas as
vias de acesso à fazenda. Qual é o problema? As estradas vicinais são onde os
indígenas circulam ao andarem entre as aldeias — diz a defensora pública.
A Comissão Arns estava lá, em Antônio João,
no dia 13. Na verdade, integrava uma
missão, da qual participava também Dom Leonardo Steiner, presidente
do Conselho Indigenista Missionário, que estava indo acudir outra crise dos
Guarani Kaiowá, na TI Panambi, em Douradina. Tiveram que mudar a rota ao saber
daquele primeiro ataque com feridos na TI Nhanderu Marangatu. Viajaram com a
proteção de duas viaturas da Força Nacional. A antropóloga Manuela Carneiro da
Cunha conta o que viu:
– Estava armado um cenário de guerra. Dom
Leonardo trocou a sua vestimenta pelos paramentos de cardeal. E assistimos a
indignação e a revolta dos Kaiowá pelo que tinha acontecido na véspera. A
mulher que tivera seu joelho destroçado estava, no hospital, sendo operada para
a amputação da perna. Havia uma enorme revolta. Quando nós estávamos lá
estabeleceu-se uma barragem de viaturas da Polícia Militar na frente, assim, a
uns 50 metros das últimas pessoas que estavam ali reunidas. E, quando estávamos
saindo da área, estava chegando mais meia dúzia de viaturas da Polícia Militar,
e também da polícia científica e de bombeiros para cercar o outro lado. Ou
seja, para cercar os indígenas — descreve a antropóloga.
A morte de Neri Kaiowá, 23 anos, pai de um bebê de 11 meses, aconteceu no dia 18, na semana seguinte a esse conflito. Três partidos, PL, Republicanos e Progressistas, entraram com uma ação junto ao ministro Gilmar Mendes alegando que a Força Nacional e a Polícia Federal “não atuam de maneira adequada para garantir a prevenção de crimes”. No caso, eles alegam crime de “esbulho possessório” por parte dos indígenas. E por isso querem que tanto em Mato Grosso do Sul, quanto no Paraná, só possam agir as forças estaduais, a Polícia Militar e a Polícia Civil. A advogada da ação que levou a PM para dentro da Terra Nhanderu Marangatu é filha dos donos da Fazenda Barra. Ela também, por coincidência, trabalha como assessora da Casa Civil do governo do Estado. E assim vai o Brasil. Como ele sempre foi.
Isto é uma vergonha!
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