Valor Econômico
Marçal ofusca bolsonarismo e fortalecimento do Centrão pode ameaçar governabilidade de Lula
O avanço da metade à direita do espectro
partidário sobre as bases municipais do país é um resultado fora da margem de
erro. Convém aguardar o que dizem as urnas de domingo para dimensioná-lo, mas é
possível esquadrinhar os caminhos que levam a este desfecho e a viela estreita
para que dele se depreendam causa e efeito.
A primeira evidência é que as bases locais da política são tradicionalmente mais conservadoras e a eleição municipal favorece largamente o incumbente. A segunda é a proporção de candidatos lançados por partidos à direita. O PL de Jair Bolsonaro e Valdemar Costa Neto lidera entre as legendas que mais ampliaram o número de candidatos, tirando o Novo, cujo crescimento estratosférico (ver tabela) se deve à pequenez de 2020, agora refastelada, pela primeira vez, no fundo partidário.
A aposta no crescimento do PL levou Bolsonaro
a passar a campanha com agenda de cacique partidário pulando de palanque em
palanque no país inteiro. Depende da capilaridade municipal e do fortalecimento
de seu partido no colégio eleitoral formado pelas cidades com mais de 200 mil
eleitores (ver tabela) para
turbinar as bancadas no Congresso e dele arrancar sua anistia e o impeachment
do ministro do Supremo Alexandre de Moraes.
Com seu jogo dúbio em São Paulo, entre
Ricardo Nunes e Pablo Marçal, corre o risco de sair derrotado em quaisquer dos
cenários com a perspectiva trazida pelo Datafolha de ultrapassagem do prefeito
pelo candidato do PRTB. Um segundo turno entre Marçal e Boulos arrisca levar o
bolsonarismo em peso para as hostes de Marçal, que não esconde a ambição de
tomar o lugar do ex-presidente. Nem precisaria ganhar no segundo turno para,
mais do que a extrema direita, ambicionar a liderança de toda a direita. A perspectiva
não afeta apenas os planos de Jair Bolsonaro como também aqueles do governador
de São Paulo, Tarcísio Freitas (Republicanos).
O PL está praticamente empatado com o PT do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cujo crescimento de candidatos lançados é
um quinto daquele registrado no partido de seu antecessor (ver tabela). A despeito desta
equidade de armas entre as duas principais lideranças nacionais, não se
registra, na campanha deste ano, a reprodução da polarização de 2022. Quem deve
se fortalecer, mais uma vez, é o Centrão.
Além do domínio consolidado, mais facilmente
reeleito, e do grande número de candidatos, o tapete que se estendeu para a
turma de Arthur Lira (PP) e Davi Alcolumbre (União) foi tecido no controle
sobre os efeitos das emendas parlamentares sobre as bases locais de seus
partidos. Os prefeitos que disputam a reeleição apoiados por partidos do
Centrão dominante no Congresso vão às urnas no domingo montados sobre um caixa
de investimentos que há muito não se via, proporcionados, além das emendas e
transferências da União, por aumento de receita.
É daí que vem a primeira lei das eleições.
Decreta-se, para todos os fins e interesses, que o resultado das disputas
locais impacta as eleições para a Câmara dos Deputados e, consequentemente, a
governabilidade de quem quer que se eleja à Presidência da República.
A disputa municipal, porém, não afeta as
eleições majoritárias subsequentes, sejam as de governador ou presidente, nem
mesmo quando o resultado em questão é em São Paulo, cuja eleição é sempre
tratada como aquela que determinará os rumos do planeta.
O vice-presidente Geraldo Alckmin voltou ao
governo de São Paulo em 2010 depois de ficar em terceiro lugar na disputa pela
prefeitura da capital no ano (2008) em que Gilberto Kassab foi reeleito para
seu último cargo majoritário. Fernando Henrique Cardoso chegou à Presidência
nove anos depois de ter caído da cadeira na disputa paulistana.
Lula também chegou lá, pela primeira vez,
dois anos depois de Marta Suplicy conquistar a Prefeitura de São Paulo, mas foi
reeleito dois anos depois da derrota da ex-prefeita em sua tentativa de ser
reconduzida ao cargo. E voltou, em 2022, depois do desempenho mais acanhado do
PT em eleições municipais.
Isso não significa que o destino do
presidente seja indiferente ao resultado das eleições. Além da governabilidade
mais difícil, cujos ventos já começarão a causar ruídos na volta dos trabalhos
legislativos em novembro, fica evidente que o núcleo duro de Lula na política,
encurralado pela concorrência da direita nas políticas sociais, tem, nos
costumes, um refúgio suicida. Basta ver o quanto a campanha de seu candidato em
São Paulo foi fustigada pelo identitarismo e pelas “fake news” de drogas. O que
está em jogo numa eleição em que se assiste a uma inédita indefinição sobre os
adversários do segundo turno é o risco de a esquerda ficar fora dele na
principal cidade do país desde que o instituto foi criado.
O Datafolha desta quinta feira, que traz
Guilherme Boulos na liderança, reduz essa perspectiva e pode deixar o segundo
turno do jeito que o PT queria. Uma disputa contra Marçal é o único cenário que
possibilita vitória, fora da margem de erro, de Boulos. A perspectiva não
apenas pode trazer Lula com mais frequência a São Paulo do que o fez no
primeiro turno, como o levou a remarcar, para a noite desta quinta, a “live”
com o candidato do PSol. O encontro virtual estava previsto para o dia anterior
e foi cancelado pelo atraso na volta do presidente do México.
A eleição de São Paulo importa porque a
cidade lança moda. A deste ano chama-se Pablo Marçal, a ameaça mais patente que
se avizinha ao domínio bolsonarista sobre a extrema direita, tanto na divisão
do PL quanto no fascínio que exerce sobre o Centrão. Uma importante liderança
do PP, certo de que o candidato do PRTB à Prefeitura de São Paulo perderá a
eleição, já sondou seu interesse em ingressar no partido, de olho no seu
potencial de puxador de votos. Marçal, desnecessário dizer, recomendou que ele
fosse plantar gabiroba muito antes de as pesquisas indicarem sua
competitividade.
Como vai sair mais rico e mais conhecido
desta campanha, seja qual for o resultado do domingo, Marçal terá dado início à
formação de um grupo político com o que há de mais radical no bolsonarismo,
como os deputados Nikolas Ferreira (PL-MG) e Ricardo Salles (PL-SP). Não
custará a ampliá-lo. Ninguém sabe em que direção esta nau desgovernada se
encaminhará, mas é certo que Marçal foi o único a circular pela campanha
paulistana com séquito de “pop star”.
Para se constatar que o ícone do dinheiro
fácil incorporado por Marçal não é um fenômeno isolado na cidade de São Paulo,
basta passar o olho na tabela desta página que mostra as ocupações que mais
cresceram entre os candidatos a prefeito deste ano.
É verdade que a base era baixíssima (foi de
um para cinco), mas nunca houve tantos garimpeiros candidatos a prefeito, nem
quando um ex-militante da causa, Jair Bolsonaro, estava na Presidência. Somados
aos técnicos de mineração, terceira ocupação que mais cresceu, já perfazem uma
bancada de nove candidatos.
A profissão com a qual Marçal entrou na vida
adulta e na cadeia foi a segunda que mais cresceu, programador de computador.
Como o questionário de ocupações do TSE, aparentemente, não tem “influencer” ou
“coach”, é possível que ainda haja clones do candidato do PRTB espalhados por
candidaturas dos mais diversos profissionais Brasil afora.
O entrelaçamento deste novo apelo do dinheiro
fácil com o que há de mais velho na política fica evidente quando se bate o
olho nas principais ocupações dos candidatos (ver tabela). Caíram os médicos, comerciantes,
professores, servidores, advogados, engenheiros. A única, entre as 20 ocupações
mais frequentes dos candidatos a prefeito, a subir foi a de “produtor
agropecuário”.
Marçal não é apenas o “arquétipo”, expressão
que ele costuma usar, do dinheiro fácil. É a contaminação da política pelo
“auto-cuidado”. Sai o Estado de bem-estar social e sua utopia das
oportunidades, e entra o cuidado com o corpo e a mente que já dominava as redes
sociais enquanto a política se distraía com a polarização. Nos vídeos da reta
final de sua campanha, Marçal define o pós-bolsonarismo: enquanto dá conselhos
para uma eleitora gordinha tomar as rédeas de sua vida “que valem tanto para o
mendigo quanto para o milionário”, Bolsonaro come “boules” com leite
condensado.
O Judiciário não ficou fora dessa. A ameaça
da inteligência artificial não se concretizou como esperado, em parte porque o
Tribunal Superior Eleitoral cuidou de endurecer a regulamentação previamente.
Mais do que a IA, o problema foi a estupidez natural que ganha curso na
propaganda eleitoral que buscou refúgio na clandestinidade do compartilhamento
de cortes de vídeos. De que adianta obrigar apresentadores de TV, como José
Luis Datena, a se licenciar de seu trabalho, se seu concorrente supera, na casa
dos milhões, sua audiência nas redes? Só podia dar em cadeirada. Com a
perspectiva de Marçal conseguir um bilhete para o segundo turno, fica em aberto
o comportamento da Justiça Eleitoral em relação às diversas representações
contra o candidato.
A eleição também marcou o início de um novo
embate entre o Judiciário e a política. Depois de passar os últimos anos
enfraquecendo a Lei da Ficha Limpa e as limitações trazidas pela improbidade
administrativa aos candidatos, os parlamentares acompanham de perto o uso
pioneiro da “vida pregressa” dos candidatos para barrar seu acesso às urnas.
Assim como a Ficha Limpa, este é um movimento
que nasceu no Rio, onde a aliança entre o crime e a política primeiro foi
escancarada. O Tribunal Regional Eleitoral do Rio excluiu candidatos condenados
em uma única instância da disputa, contrariando a Ficha Limpa mas valendo-se da
Constituição em seus acórdãos.
Está lá no nono parágrafo do artigo 14 que a lei deve proteger a livre escolha dos eleitores da improbidade e da imoralidade da vida pregressa dos candidatos e da influência do poder econômico e do abuso de funções públicas. É o movimento mais audacioso do Judiciário para conter o avanço irrefreável do crime organizado sobre o Estado. Na condição de regulador dos serviços municipais, as prefeituras são sua porta de entrada. Por isso são a nova fronteira do embate entre a política e o Judiciário. Resta ao eleitor deste domingo se impor sobre o desfecho.
Legal!
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