segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Os alertas paulistanos e a reeleição do prefeito - Carlos Melo

O Globo

Vitória de Ricardo Nunes aponta para um dado fundamental desta eleição: Jair Bolsonaro restou como mito decaído

Se “São Paulo é como o mundo todo”, os problemas da cidade espelham o país e revelam ao sistema político, à opinião pública e à Justiça Eleitoral o imperativo de renovar um modelo desgastado. A começar pelos recursos, para além do fundo eleitoral: o uso arbitrário da máquina pública, obras sem licitação, o velho patrimonialismo, enfim. Tudo isso acaba por ter influência na eleição.

E compromete o entendimento se os reeleitos foram mesmo eficientes ou se esbanjaram recursos mal gastos, com foco exclusivo na eleição ou no favorecimento de grupos específicos. O tempo dirá, mas é necessário investigar. Outro ponto: o crime organizado ocupou espaço no debate público de modo inédito, seja por denúncias de associação com políticos, seja pela percepção geral de financiamento ilegal de campanhas, ficando uma perigosíssima sombra sobre a higidez do sistema.

Não bastassem essas questões, Pablo Marçal debutou numa eleição de modo avassalador. Houve uso e abuso das redes sociais, proliferação de fake news. Normalizadas, as mentiras campearam na mesma medida em que, paradoxalmente, escândalos deixaram de chocar uma sociedade letárgica. Sem regulamentação e punição efetiva para os excessos, o precedente torna-se inspiração.

Com a profundidade de uma gilete, debates não tiveram importância programática. Perguntas foram ignoradas. A busca pela verdade e o esclarecimento do eleitor passaram ao largo. No primeiro turno, houve barbárie; no segundo, o tédio de uma piada grosseira exaustivamente repetida. À imprensa cabe mais que a mediação anódina, a checagem on-line tornou-se uma imposição para quem tem compromisso com os fatos.

Com isso, o extraordinário da vitória de Ricardo Nunes foi a dificuldade com que o prefeito disputou a reeleição. Sentado num orçamento sem precedentes e em uma máquina política colossal, natural seria liquidar a fatura no primeiro turno. Mas foi para o segundo mais em função dos erros de Marçal que por seus méritos ou pouco carisma.

Sua vitória aponta, porém, para um dado fundamental desta eleição: Jair Bolsonaro restou como mito decaído. O ex-presidente vacilou e se escondeu na ambiguidade diante de Marçal. Restou sem importância. Nunes deve o cargo a Tarcísio de Freitas, que lhe escorou no pior momento. Foi o grito de independência do governador em relação ao ex-presidente e a afirmação nacional de seu nome.

A eleição mostrou que Jair Bolsonaro perdeu o protagonismo na direita brasileira, que se fragmentou. O mito ficou confinado ao direitismo reacionário e disputou, mais que tudo, contra a direita democrática. Ao mesmo tempo, acusado de subsumir ao sistema, viu o flanco mais radical ser-lhe tomado por Marçal, a quem demonstrou reverencial temor. É pouco provável que Bolsonaro venha a dar as cartas de 2026, como planejava

Outro fato marcante é o desgaste do presidente Lula e do PT — não apenas em São Paulo. A intriga interna já responsabiliza Lula e PT por não terem se dedicado a Guilherme Boulos. O petismo esboça ter sido um erro apostar no candidato do PSOL. A derrota não tem pai, mas parece ser injusto com um e com outro.

Hipótese mais cruel sugere que Lula deu a Boulos tudo o que tinha: um considerável capital eleitoral de primeiro turno, insuficiente para a vitória no segundo. Caberia a Boulos ampliar, o que é difícil quando se representa um governo (Lula) que tem se negado a isso, preso à sua bolha e confinado à governabilidade no Congresso, exclusivamente. Frentes amplas são construções complexas na sociedade, requerem esforço sincero e contínuo ao longo do tempo; não se ajustam ao desespero eleitoral. Dependem de disposição. Fica a lição.

*Carlos Melo, cientista político, é professor senior fellow do Insper

 

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