O Globo
Vitória de Ricardo Nunes aponta para um dado
fundamental desta eleição: Jair Bolsonaro restou como mito decaído
Se “São Paulo é como o mundo todo”, os
problemas da cidade espelham o país e revelam ao sistema político, à opinião
pública e à Justiça
Eleitoral o imperativo de renovar um modelo desgastado. A
começar pelos recursos, para além do fundo eleitoral: o uso arbitrário da
máquina pública, obras sem licitação, o velho patrimonialismo, enfim. Tudo isso
acaba por ter influência na eleição.
E compromete o entendimento se os reeleitos
foram mesmo eficientes ou se esbanjaram recursos mal gastos, com foco exclusivo
na eleição ou no favorecimento de grupos específicos. O tempo dirá, mas é
necessário investigar. Outro ponto: o crime organizado ocupou espaço no debate
público de modo inédito, seja por denúncias de associação com políticos, seja
pela percepção geral de financiamento ilegal de campanhas, ficando uma
perigosíssima sombra sobre a higidez do sistema.
Não bastassem essas questões, Pablo Marçal debutou numa eleição de modo avassalador. Houve uso e abuso das redes sociais, proliferação de fake news. Normalizadas, as mentiras campearam na mesma medida em que, paradoxalmente, escândalos deixaram de chocar uma sociedade letárgica. Sem regulamentação e punição efetiva para os excessos, o precedente torna-se inspiração.
Com a profundidade de uma gilete, debates não
tiveram importância programática. Perguntas foram ignoradas. A busca pela
verdade e o esclarecimento do eleitor passaram ao largo. No primeiro turno,
houve barbárie; no segundo, o tédio de uma piada grosseira exaustivamente
repetida. À imprensa cabe mais que a mediação anódina, a checagem on-line
tornou-se uma imposição para quem tem compromisso com os fatos.
Com isso, o extraordinário da vitória de
Ricardo Nunes foi a dificuldade com que o prefeito disputou a reeleição.
Sentado num orçamento sem precedentes e em uma máquina política colossal,
natural seria liquidar a fatura no primeiro turno. Mas foi para o segundo mais
em função dos erros de Marçal que por seus méritos ou pouco carisma.
Sua vitória aponta, porém, para um dado
fundamental desta eleição: Jair
Bolsonaro restou como mito decaído. O ex-presidente vacilou e
se escondeu na ambiguidade diante de Marçal. Restou sem importância. Nunes deve
o cargo a Tarcísio de Freitas, que lhe escorou no pior momento. Foi o grito de
independência do governador em relação ao ex-presidente e a afirmação nacional
de seu nome.
A eleição mostrou que Jair Bolsonaro perdeu o
protagonismo na direita brasileira, que se fragmentou. O mito ficou confinado
ao direitismo reacionário e disputou, mais que tudo, contra a direita
democrática. Ao mesmo tempo, acusado de subsumir ao sistema, viu o flanco mais
radical ser-lhe tomado por Marçal, a quem demonstrou reverencial temor. É pouco
provável que Bolsonaro venha a dar as cartas de 2026, como planejava
Outro fato marcante é o desgaste do
presidente Lula e
do PT —
não apenas em São Paulo. A intriga interna já responsabiliza Lula e PT por não
terem se dedicado a Guilherme
Boulos. O petismo esboça ter sido um erro apostar no candidato
do PSOL.
A derrota não tem pai, mas parece ser injusto com um e com outro.
Hipótese mais cruel sugere que Lula deu a
Boulos tudo o que tinha: um considerável capital eleitoral de primeiro turno,
insuficiente para a vitória no segundo. Caberia a Boulos ampliar, o que é
difícil quando se representa um governo (Lula) que tem se negado a isso, preso
à sua bolha e confinado à governabilidade no Congresso, exclusivamente. Frentes
amplas são construções complexas na sociedade, requerem esforço sincero e
contínuo ao longo do tempo; não se ajustam ao desespero eleitoral. Dependem de
disposição. Fica a lição.
*Carlos Melo, cientista político, é professor
senior fellow do Insper
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