sábado, 2 de novembro de 2024

A arte de perder (II) – Eduardo Affonso

O Globo

O ponto de partida é ignorar que o candidato precise ter um mínimo de empatia e conexão com o eleitorado

A arte de ganhar uma eleição não é nenhum mistério: basta convencer a maioria dos eleitores de que seu candidato seja a pessoa certa para o cargo. Perder uma eleição é mais complicado: requer empenho, prática e habilidade.

Como no caso dos aviões — que têm o hábito de não permitir que um erro sozinho os derrube —, candidaturas só se esborracham nas urnas por uma combinação de fatores. Alguns podem parecer aleatórios, mas a maioria é cultivada com afinco — não apenas, de forma ostensiva, durante a campanha, mas também na surdina, na trégua entre um pleito e outro.

O ponto de partida é ignorar que o candidato precise ter um mínimo de empatia e conexão com o eleitorado e insistir naqueles com alta rejeição. (Na falta de um candidato com alta rejeição, pode-se substituí-lo por outro com rejeição altíssima, que isso não altera a receita.)

Cultue seu líder como se ele fosse o caminho, a verdade e a vida; faça o possível e o impossível para regular os meios de comunicação; seja obcecado com organizações trabalhistas e com o controle total da economia — mas não hesite em afirmar que fascistas são os outros. Em vez de procurar saber o que querem os trabalhadores, enfie-lhes sindicatos (e impostos) goela abaixo — os autoritários nunca somos “nós”. Separe as pessoas pela cor da pele — e insista que os racistas são “eles”. Viva uma ideologia morta — mas dispare a pecha de “retrógrado” a torto e a direito. Em suma, passe a campanha demonizando os eleitores do adversário — afinal, quem precisa dos votos deles?

Na véspera de uma disputa apertada ou de um eventual segundo turno, sirva bolo, fale manso, deixe de lado a superioridade moral (sim, você consegue!) e exercite a condescendência. Mesmo morando no Leblon ou na Savassi, tente persuadir os paulistas a votar em quem você tem certeza de que seria o melhor prefeito para eles (não, ninguém notará que você não sabe a diferença entre paulista e paulistano). Torça para que tenham memória fraca e não se lembrem de nada do que foi dito enquanto você achava que a vitória era certa.

Se alguém sugerir prudência e autocrítica, dobre a meta e proponha radicalizar o discurso. Esqueça os rappers (“Tem que falar para uma multidão que precisa ser conquistada, senão vamos cair no abismo”) — eles não entendem de povo nem de periferia — e ouça os antropólogos (“Acho justo esse tensionamento para que a esquerda se coloque mais à esquerda”). Quem garante que, quando o bacalhau está intragavelmente salgado, não é um pouco mais de sal que vá resolver?

Tenha em mente que o conceito de “frente ampla” é como escrita em árabe, hebraico, japonês: sempre da direita para a esquerda — e só vale se for para receber apoios, nunca para apoiar.

Uma vez que tenha sido derrotado, abandone aquele discurso sobre democracia, soberania popular, desejo da maioria: xingue os vencedores. Deseje que morram afogados na próxima enchente, que passem quatro anos nas trevas (reais e metafóricas). Afinal, eles nunca mais votarão, certo?

Seja a resistência sempre que a vontade expressa nas urnas não for a sua. (Quando o outro lado resistir a um resultado legítimo, chame de “golpe”.)

Continue assim, e a derrota em 2026 (contra quem quer que seja) está no papo.


2 comentários:

  1. Nada promissor o futuro do país - e da humanidade - nas mãos de fanáticos donos da verdade suprema, seja de direita ou de esquerda.

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  2. Hahahahahah

    Excelente coluna !

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