sexta-feira, 22 de novembro de 2024

A favela em números - José de Souza Martins

Valor Econômico

Embora a favela seja um modo socialmente degradante de morar na cidade, é, também, um lugar de criatividade social

O IBGE divulgou os dados do Censo Demográfico de 2022 relativos ao que é um Censo das Favelas e Comunidades Urbanas. Como sugeriu Francisco de Lima, o Preto Zezé, presidente da Central Única das Favelas (Cufa), o censo permitirá ao Estado tratar dos problemas das favelas de maneira socialmente apropriada. Uma liderança desse porte já é um fato auspicioso, que liberta o assunto das improvisações impressionistas do senso comum.

É significativo que a conceituação desses conjuntos urbanos voltem a ser definidos como “favelas”, depois dos esforços para redefini-los como “comunidades”. Os números do Censo mostram que há poucas discrepâncias entre as favelas e o país. Também nelas repete-se a diversidade social, diferenças e diversificações que as diferenciam do que a sociologia define como “comunidade”.

Não se trata, portanto, de acobertar o que a favela é, mas de reconhecê-la como o que é, e possibilitar política sociais e urbanas que permitam reconhecer e resolver a anomia social decorrente do que nelas é expressão de urbanização patológica. A de sua concentração em áreas de “deterioração social”, como as definiu o geógrafo Lewis Mumford. Elas não são, porém, propriamente, um problema geográfico, espacial e territorial.

O crescimento do número de favelas no país é indicativo de um problema social grave e persistente, apesar do declínio na proporção de favelados em relação ao todo da população. Em 2010, eram 6.329 favelas, com mais de 11 milhões de habitantes. Em 2022, 12.348 favelas, com mais de 16 milhões de habitantes. Um crescimento de uma vez e meia a população favelada do censo anterior. Mas diminui a proporção de moradores de favelas de 8,1% da população brasileira para 6% entre os dois censos. Uma pequena queda nos índices de favelização.

As favelas, no entanto, têm se espalhado pelo país. O que era no início dos anos 1960 uma realidade tida como característica do Rio de Janeiro, é hoje praticamente uma realidade nacional, com a exceção do Rio Grande do Sul, que não aparece nos destaques de número de favelas e de seus habitantes.

As favelas mais populosas estão no Norte e no Sudeste. Portanto, em extremos opostos do crescimento econômico. O que indica que a favelização é um problema estrutural que resulta de uma economia sem desenvolvimento social, uma economia que se nutre da anomalia de formas perversas de inclusão social.

A favela tende a resultar do deslocamento territorial de populações rurais expulsas da terra pelas transformações nas relações de trabalho, não raro o trabalho substituído pela adoção de máquinas e de técnicas agrícolas dispensadoras de mão de obra. Não é o mercado que modifica as condições sociais da produção. Por trás dessas mudanças estão os subsídios e os incentivos fiscais do governo. Até mesmo as técnicas produtivas inovadoras criadas pelas universidades, que não se preocupam com as inovações sociológicas e antropológicas alternativas ao problema social que aflige essas populações.

No Sudeste há uma variante significativa. Decorreu do arrocho salarial a adoção do neoliberalismo econômico, em 1964, pelo governo militar, como reorientação da economia brasileira contra o nacional-desenvolvimentismo, industrialista. Muitos habitantes das cidades foram se deslocando para o que começou a ser definido como periferia e na periferia para as favelas.

Embora a favela seja um modo socialmente degradante de morar na cidade, por ser ela essencialmente um núcleo de carências e insuficiências, é, também, um lugar de criatividade social, de reinvenção da sociedade como sociedade paralela e alternativa em que ela vem se transformando.

Sua edificação em terrenos quase sempre invadidos já indica que o principal problema em sua origem é o nosso capitalismo latifundista e rentista. Ele cresce menos do que poderia na produção agrícola e industrial. Um capitalismo anômalo que, nesses setores, cria lucros sem criar produtos.

O comércio imobiliário nas favelas é florescente: “Vende-se este barraco” é anúncio frequente em pichações. Há alguns anos, um artigo em “O Estado de S. Paulo” apontava a favela da Rocinha, hoje a maior do país, com 72.021 habitantes, como lugar de uma movimentada agência de um dos maiores bancos do país.

Os favelados inventaram a imaginativa arquitetura dos mutirões e da autonomia dos pisos. O “dono” do cômodo do primeiro piso vende o seu teto como piso de um morador superposto. E assim vão até três ou quatro pisos. Uma solução para a casa própria, ainda que imprópria.

A favela tem sua própria cultura urbana, não raro de motivação comunitária, alternativa e divergente. Não raro a favela é o foco social de uma consciência crítica da sociedade que a gera.

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