Valor Econômico
Embora a favela seja um modo socialmente
degradante de morar na cidade, é, também, um lugar de criatividade social
O IBGE divulgou os dados do Censo Demográfico
de 2022 relativos ao que é um Censo das Favelas e Comunidades Urbanas. Como
sugeriu Francisco de Lima, o Preto Zezé, presidente da Central Única das
Favelas (Cufa), o censo permitirá ao Estado tratar dos problemas das favelas de
maneira socialmente apropriada. Uma liderança desse porte já é um fato
auspicioso, que liberta o assunto das improvisações impressionistas do senso
comum.
É significativo que a conceituação desses conjuntos urbanos voltem a ser definidos como “favelas”, depois dos esforços para redefini-los como “comunidades”. Os números do Censo mostram que há poucas discrepâncias entre as favelas e o país. Também nelas repete-se a diversidade social, diferenças e diversificações que as diferenciam do que a sociologia define como “comunidade”.
Não se trata, portanto, de acobertar o que a
favela é, mas de reconhecê-la como o que é, e possibilitar política sociais e
urbanas que permitam reconhecer e resolver a anomia social decorrente do que
nelas é expressão de urbanização patológica. A de sua concentração em áreas de
“deterioração social”, como as definiu o geógrafo Lewis Mumford. Elas não são,
porém, propriamente, um problema geográfico, espacial e territorial.
O crescimento do número de favelas no país é
indicativo de um problema social grave e persistente, apesar do declínio na
proporção de favelados em relação ao todo da população. Em 2010, eram 6.329
favelas, com mais de 11 milhões de habitantes. Em 2022, 12.348 favelas, com
mais de 16 milhões de habitantes. Um crescimento de uma vez e meia a população
favelada do censo anterior. Mas diminui a proporção de moradores de favelas de
8,1% da população brasileira para 6% entre os dois censos. Uma pequena queda nos
índices de favelização.
As favelas, no entanto, têm se espalhado pelo
país. O que era no início dos anos 1960 uma realidade tida como característica
do Rio de Janeiro, é hoje praticamente uma realidade nacional, com a exceção do
Rio Grande do Sul, que não aparece nos destaques de número de favelas e de seus
habitantes.
As favelas mais populosas estão no Norte e no
Sudeste. Portanto, em extremos opostos do crescimento econômico. O que indica
que a favelização é um problema estrutural que resulta de uma economia sem
desenvolvimento social, uma economia que se nutre da anomalia de formas
perversas de inclusão social.
A favela tende a resultar do deslocamento
territorial de populações rurais expulsas da terra pelas transformações nas
relações de trabalho, não raro o trabalho substituído pela adoção de máquinas e
de técnicas agrícolas dispensadoras de mão de obra. Não é o mercado que
modifica as condições sociais da produção. Por trás dessas mudanças estão os
subsídios e os incentivos fiscais do governo. Até mesmo as técnicas produtivas
inovadoras criadas pelas universidades, que não se preocupam com as inovações
sociológicas e antropológicas alternativas ao problema social que aflige essas
populações.
No Sudeste há uma variante significativa.
Decorreu do arrocho salarial a adoção do neoliberalismo econômico, em 1964,
pelo governo militar, como reorientação da economia brasileira contra o
nacional-desenvolvimentismo, industrialista. Muitos habitantes das cidades
foram se deslocando para o que começou a ser definido como periferia e na
periferia para as favelas.
Embora a favela seja um modo socialmente
degradante de morar na cidade, por ser ela essencialmente um núcleo de
carências e insuficiências, é, também, um lugar de criatividade social, de
reinvenção da sociedade como sociedade paralela e alternativa em que ela vem se
transformando.
Sua edificação em terrenos quase sempre
invadidos já indica que o principal problema em sua origem é o nosso
capitalismo latifundista e rentista. Ele cresce menos do que poderia na
produção agrícola e industrial. Um capitalismo anômalo que, nesses setores,
cria lucros sem criar produtos.
O comércio imobiliário nas favelas é
florescente: “Vende-se este barraco” é anúncio frequente em pichações. Há
alguns anos, um artigo em “O Estado de S. Paulo” apontava a favela da Rocinha,
hoje a maior do país, com 72.021 habitantes, como lugar de uma movimentada
agência de um dos maiores bancos do país.
Os favelados inventaram a imaginativa
arquitetura dos mutirões e da autonomia dos pisos. O “dono” do cômodo do
primeiro piso vende o seu teto como piso de um morador superposto. E assim vão
até três ou quatro pisos. Uma solução para a casa própria, ainda que imprópria.
A favela tem sua própria cultura urbana, não
raro de motivação comunitária, alternativa e divergente. Não raro a favela é o
foco social de uma consciência crítica da sociedade que a gera.
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