domingo, 24 de novembro de 2024

Esbórnia orçamentária é ataque ao crescimento - Muniz Sodré

Folha de S. Paulo

Déficit zero não pode continuar a ser álibi da rataria que rói há séculos, sem dó, o baú patrimonial da nação

De repente, acorre à memória uma historinha infantil versejada: "Ratusca Boduça de Rafo Rafuça morava na roça / por voracidade, quis ir à cidade com toda essa troça / os cinco fedelhos de Rafo Rafelhos que filhos lhe são / pois lá na cidade tem uma comadre que habita o porão / da gorda ricaça Fifica Fogaça, que tem na despensa / mui ricas pitanças pra suas papanças e nem sequer pensa...". E adiante narra a ouvidos ainda inocentes um assalto sistemático de ratos à desprevenida Fifica Fogaça. Outro nome para o tesouro da "Viúva", mote de um arguto historiógrafo das mazelas nacionais.

A memória foi acionada pela burlesca assonância de uma notícia: no Maranhão, o ministro dos Esportes, André Fufuca, visitou o estádio Fufucão, batizado em homenagem ao avô. Além do Fufucão, uma areninha em Pindaró, cidade governada por Fufuca Dantas, pai de André Fufuca. Cerca de R$ 90 milhões foram reservados para a construção de novos campinhos-soçaite, com grama sintética e dependências confortáveis.

Essa nota ressalta aos olhos quando o governo se debate para anunciar um pacote de corte de gastos, tido como indispensável ao equilíbrio econômico do país. Educação e saúde são os alvos de sempre, mas se suplica o quinhão de outros Poderes, como a magistratura e o parlamento.

As mordomias são ofensivas, senão obscenas. Juízes têm direito a 120 dias de folgas, fora os 60 de férias tradicionais. Parlamentares dispõem de R$ 44,67 bilhões para esbanjar em emendas aleatórias. O custo das isenções tributárias para empresas é de R$ 97,7 bilhões. E, para defender o país de ameaças supostamente internas (como se depreende do sinistro conspiracionismo "punhal verde e amarelo"), pois inexistem as externas, as Forças Armadas ficam com R$ 86, 8 bilhões.

No campo social, as despesas são modestas, mas é premente o caso das universidades federais, que consomem R$ 5,5 bilhões em meio a enormes dificuldades. Neste mês de novembro, a UFRJ, aliás com um reitor competentíssimo à frente, deu nó em pingo d´água para não ficar sem luz. É caso representativo porque se trata da maior universidade federal do país, uma das melhores da América Latina, com professores de alta qualidade, laboratórios e pesquisas relevantes para a sociedade nos campos da tecnologia, da saúde, da matemática e das ciências sociais.

Para o economista João Sicsú, "quem corta a luz da universidade é o governo federal, não a concessionária de energia. Ela forneceu o serviço, quem não pagou a conta foi o governo" (Sintufrj, 14/11/2024). Este argumento sugere uma revisão de prioridades na elaboração do orçamento, que entenda "valor" não como o monetarista da meta de redução a zero do déficit público, e sim como uma atribuição desejável, dotada de conteúdo acessível a todos os agentes sociais e de uma significação apta como objeto de atividade útil.

É patético confrontar dificuldades mesquinhas de um centro de excelência do conhecimento, indispensável ao crescimento econômico, com facilidades triviais da esbórnia orçamentária. Na historinha, o gato conteve dona Ratusca Boduça. Na história vivida, déficit zero não pode continuar a ser álibi da rataria que rói há séculos, sem dó, o baú patrimonial da nação.

 

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