Folha de S. Paulo
Déficit zero não pode continuar a ser álibi
da rataria que rói há séculos, sem dó, o baú patrimonial da nação
De repente, acorre à memória uma historinha infantil versejada: "Ratusca Boduça de Rafo Rafuça morava na roça / por voracidade, quis ir à cidade com toda essa troça / os cinco fedelhos de Rafo Rafelhos que filhos lhe são / pois lá na cidade tem uma comadre que habita o porão / da gorda ricaça Fifica Fogaça, que tem na despensa / mui ricas pitanças pra suas papanças e nem sequer pensa...". E adiante narra a ouvidos ainda inocentes um assalto sistemático de ratos à desprevenida Fifica Fogaça. Outro nome para o tesouro da "Viúva", mote de um arguto historiógrafo das mazelas nacionais.
A memória foi acionada pela burlesca
assonância de uma notícia: no Maranhão, o ministro dos Esportes, André Fufuca, visitou o estádio Fufucão, batizado em homenagem
ao avô. Além do Fufucão, uma areninha em Pindaró, cidade governada por Fufuca
Dantas, pai de André Fufuca. Cerca de R$ 90 milhões foram reservados para a
construção de novos campinhos-soçaite, com grama sintética e dependências
confortáveis.
Essa nota ressalta aos olhos quando o governo
se debate para anunciar um pacote de corte de gastos, tido como indispensável
ao equilíbrio econômico do país. Educação e
saúde são os alvos de sempre, mas se suplica o quinhão de outros Poderes, como
a magistratura e o parlamento.
As mordomias são ofensivas, senão obscenas.
Juízes têm direito a 120 dias de folgas, fora os 60 de férias tradicionais. Parlamentares dispõem de R$
44,67 bilhões para esbanjar em emendas aleatórias. O custo das isenções
tributárias para empresas é de R$ 97,7 bilhões. E, para defender o país de
ameaças supostamente internas (como se depreende do sinistro conspiracionismo
"punhal verde e amarelo"), pois inexistem as externas, as Forças Armadas ficam com R$ 86, 8 bilhões.
No campo social, as despesas são modestas,
mas é premente o caso das universidades federais, que consomem R$ 5,5 bilhões
em meio a enormes dificuldades. Neste mês de novembro, a UFRJ, aliás com um reitor competentíssimo à frente, deu nó em pingo d´água para não ficar sem luz. É caso
representativo porque se trata da maior universidade federal do país, uma das
melhores da América Latina, com professores de alta qualidade, laboratórios e
pesquisas relevantes para a sociedade nos campos da tecnologia, da saúde, da
matemática e das ciências sociais.
Para o economista João Sicsú, "quem
corta a luz da universidade é o governo federal, não a concessionária de
energia. Ela forneceu o serviço, quem não pagou a conta foi o governo"
(Sintufrj, 14/11/2024). Este argumento sugere uma revisão de prioridades na
elaboração do orçamento, que entenda "valor" não como o monetarista
da meta de redução a zero do déficit público, e sim como uma atribuição
desejável, dotada de conteúdo acessível a todos os agentes sociais e de uma
significação apta como objeto de atividade útil.
É patético confrontar dificuldades mesquinhas
de um centro de excelência do conhecimento, indispensável ao crescimento
econômico, com facilidades triviais da esbórnia orçamentária. Na historinha, o
gato conteve dona Ratusca Boduça. Na história vivida, déficit zero não pode
continuar a ser álibi da rataria que rói há séculos, sem dó, o baú patrimonial
da nação.
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