quinta-feira, 14 de novembro de 2024

O ajuste que pode definir rumo de Lula em 2026 - Maria Cristina Fernandes

Valor Econômico

Colheita do presidente terá que ficar para o último ano do governo se quiser salvá-lo

Na manhã desta quinta-feira, dona Norma (nome fictício) chegou danada da vida à casa em que trabalha como empregada doméstica. “Se Lula mexer no meu salário, não voto mais nele. Acordo às 4h da manhã e [Fernando] Haddad e Simone [Tebet] querem cortar meu salário”. Sua patroa tentou lhe explicar que a proposta em curso manterá o ganho real, mas acabou convencida de que ela tem razão.

Naquela manhã, Dona Norma havia recebido mensagem num grupo de WhatsApp com a “notícia”. Católica, mora em Formosa, a 78 km de Brasília, onde trabalha. Votou no presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2022, mas tem filha e genro policiais militares e eleitores de Jair Bolsonaro, que agraciou um parente com o “Auxílio Brasil”, nome que o ex-presidente deu ao Bolsa Família.

Dois dias antes, o senador Cleitinho (Republicanos-MG) subiu à tribuna no Senado para criticar a escala 6x1 de trabalho, movimento nascido no Psol. Disse que o pai, comerciante no sacolão de Divinópolis (MG), morreu aos 70 anos fazendo uma escala 7x0 e, por isso, nunca lhe levou a um jogo de futebol nem lhe ajudou nas lições da escola.

Cleitinho chegou ao Senado no bonde bolsonarista depois de derrotar o atual ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira (PSD), em 2022, numa campanha feita com paródias, para as redes sociais, sobre corrupção e petistas.

Dona Norma e Cleitinho são duas lombadas na rota da encruzilhada trazida pela volta de Donald Trump ao poder. Se, de um lado, sua eleição deu urgência ao pacote fiscal, sem o qual a economia do segundo biênio ameaça desandar, do outro, o ajuste arrisca o ibope de Lula, que dificilmente poderá ser substituído como o candidato governista.

Em 2022, o bonde de Cleitinho não foi capaz de carregar a turma de dona Norma, que tinha um encontro marcado com o legado lulista. É a capacidade de Lula de honrá-lo que poderá manter seu eleitorado imune aos bondes do populismo e da desinformação.

O terceiro ano costuma ser aquele em que os governos começam a colher. O próprio Lula fez discursos e deu entrevistas ao longo deste semestre anunciando a safra do segundo biênio. Agora está sendo convencido de que a colheita deve ser adiada para o último ano de seu governo sob pena de o juro, em contínua elevação, inviabilizar a retomada do crescimento e os resultados que pretende.

Na sexta-feira, durante a cerimônia dos cinco anos de sua saída da prisão, com religiosos de várias denominações que lá estiveram, pareceu angustiado. A pessoas de seu círculo, não revelou motivos distintos daqueles que tem exposto nos últimos dias: não aceitará que a corda arrebente de um lado só, a da massa de eleitores de baixa renda do seu eleitorado cativo.

É só olhar para a trajetória do déficit fiscal ao longo deste ano para se atestar a dificuldade de Lula em equilibrar os novos gastos distribuindo perdas e danos. Além disso, novas receitas como a decorrente das mudanças no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) ou a de concessões públicas não se confirmaram. Desonerações, como a da folha de pagamentos, não se realizaram na velocidade com que se planejava, e, assim, o governo se distanciou muito do anunciado déficit zero.

A ambição do pacote é proporcional à angústia do presidente. Nenhum dos dois faz mover a resistência dos setores a serem atingidos, especialmente aqueles mais organizados cujo poder de pressão move uma indústria de esboços, minutas e simulações daquilo que está por vir.

O país já assistiu à ascensão da extrema-direita uma vez - e quase uma segunda - para saber que a base social deste governo só aceitará que a política de reajuste do mínimo se enquadre se, na nau do arcabouço, também couberem aquinhoados de todos os naipes públicos e privados, civis e militares. O pacote não é para o “mercado”, que, contra Lula, embarcará novamente em qualquer bolsonarista escovado. É para que se cumpra o programa que elegeu este governo.

Aquelas pressões que não surtirem efeito nos corredores da Esplanada buscarão abrigo no Congresso ao longo da tramitação do pacote. Muitas das frustrações de receita do governo se originaram de jabutis parlamentares. O risco de que o mesmo aconteça com este pacote não pode ser desprezado.

A tramitação do ajuste fiscal no Congresso será concomitante à apreciação, pelo Supremo Tribunal Federal, de dois movimentos determinantes para o eixo em torno do qual o Legislativo hoje se estrutura, as emendas parlamentares. O primeiro são os relatórios da Controladoria-Geral da União.

Além de esmiuçar, no detalhe, o disparate na aplicação das emendas, destinadas, no melhor das hipóteses, a perpetuar carreiras parlamentares sem que sejam atendidos os fins a que se destinam, o ministro Vinicius Carvalho deixa claro no relatório que o STF terá panos pras mangas para arguir pela inconstitucionalidade de dispositivos como as “emendas Pix”. Com a usurpação das prerrogativas das câmaras municipais em deliberar sobre a alocação dos recursos, estaria caracterizada a afronta ao princípio federativo.

Além do relatório, CGU e Polícia Federal fazem investigações conjuntas que podem vir a resultar em operações sobre parlamentares. E, finalmente, há os inquéritos que já estão na Corte, que atingem até candidatos às mesas diretoras que deitaram e rolaram com emendas.

Ou seja, se o Congresso terá em mãos um pacote que pode vir a ser um divisor de águas deste mandato, o Supremo também terá poderes para atingir em cheio o poder inédito de que hoje desfruta o Legislativo, ainda que os rumos da extrema-direita nos EUA possam vir a inibi-lo. O enfrentamento dos dois Poderes determinará o destino do terceiro, o Executivo.

Exigirá uma mediação mais refinada do que aquela que resultou na aprovação do acordo para as emendas: um teto para a pilhagem. O presidente da República não terá como escapar de enfrentá-la se quiser evitar que dona Norma suba no bonde de Cleitinho.

 

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