O Globo
Homens têm um longo aprendizado pela frente
na arte de esperar alguém concluir um raciocínio
É possível que, numa discussão, pessoas com
posições (aparentemente) antagônicas tenham (igualmente) sua cota de razão? É —
e seria muito proveitoso se, em vez de se encastelarem em suas respectivas
verdades, cada um se permitisse uma escuta mais atenta da verdade alheia. A
isso se chama — se não me falha a memória — diálogo.
Passamos a infância sendo tratados como
crianças (talvez porque fôssemos mesmo crianças...), incapazes de entender os
argumentos dos adultos. Tínhamos de nos contentar com “É porque sim” ou
“Obedece que eu sou sua mãe”. Chegar à idade adulta e continuar ouvindo isso,
agora sob novo formato — “Eu tenho lugar de fala; você não tem” — é
desanimador.
O conceito, em tese, é inatacável: cada pessoa detém, a partir de sua vivência, um ponto de vista particular. Não é preciso que alguém fale por ela: ela é capaz de se expressar de forma única e (com o perdão da palavra) privilegiada.
Como no samba de Noel, o “lugar de fala” não
quer abafar ninguém. Ao contrário, ele amplia a discussão. Todos passam a ter
protagonismo quando aqueles de quem se fala começam a falar por si. (Ou, no
dialeto identitarês, é uma “ferramenta para dar centralidade às vozes de grupos
historicamente subalternizados”.)
Porém se esqueceram de combinar com os
militantes, que tornaram ainda mais utópica a prece de Dom Hélder Câmara:
— Nada de escravo de hoje ser senhor de
escravos de amanhã. Basta de escravos! Um mundo sem senhor e sem escravos.
(Sim, lá nos anos 1980 ainda se dizia
“escravo”, não “pessoa escravizada” — e isso não nos fazia mais ou menos
escravagistas.)
O “lugar de fala” dos que não tinham voz
virou mordaça para a divergência — reserva de mercado, curralzinho de ideias —,
restringindo a pluralidade. Apenas quem experimenta, na pele, uma situação
teria legitimidade para comentá-la (a experiência intelectual não conta).
Podemos imaginar aonde isso nos levaria.
Seria prerrogativa dos calapalos ou dos camaiurás manifestar-se acerca de
quaisquer questões relativas ao Parque Nacional do Xingu — esqueçam a Funai e o
trabalho dos (brancos, paulistas) irmãos Villas-Boas. Só judeus (e nazistas)
discutiriam o Holocausto. Os brasilianistas teriam de se naturalizar.
Laurentino Gomes jamais poderia ter escrito a monumental trilogia “Escravidão”.
E já sabemos aonde isso nos levou: só a
jornalistas mulheres seria dado opinar sobre questões que envolvessem a
condição feminina, o voto feminino etc. A um analista político portador de
cromossomos XY, competiria tratar tão somente dos temas afeitos a seu gênero
(e, por extensão, a sua orientação sexual, sua ideologia, sua religião,
sua etnia, seu time). Em última instância, tornar-se um analista político de si
mesmo.
Cortar a fala de alguém não é manterrupting,
mas mannerslacking (falta de modos, como gostavam de dizer nossos
avós). Quem já tentou ouvir uma mesa-redonda de futebol terá notado que jamais
uma frase foi dita por inteiro, sem um aparte. Homens têm um longo aprendizado
pela frente na arte de esperar alguém concluir um raciocínio.
Mas todo mundo tem lugar de fala — seja a
partir de suas experiências de vida ou de seus conhecimentos. Para a mágica do
diálogo acontecer, falta entender isso — e desenvolver o lugar de escuta.
Bom texto! Sim, "todo mundo tem lugar de fala - seja a partir de suas experiências de vida ou de seus conhecimentos", ou simplesmente de SUAS PRÓPRIAS OPINIÕES!
ResponderExcluirsua proprias opiniões é pleonasmo duplo. MAM
ExcluirA trilogia é fartamente identitária. Só "pecou" num ponto: afirmou que Zumbi foi invenção do PCdoB (gaúcho) na década de 30. Além da mulata GloboNews, nnguém reclamou ou desmentiu. MAM
ResponderExcluirE não é que o tal de MAM finalmente tem razão nalguma coisa? "Suas próprias opiniões" que digitei em maiúsculas é mesmo um pleonasmo! Agora, por que seria duplo? Mais um exagero do exagerado?
ResponderExcluirTodo mundo pode falar sobre homossexualidade e alcoolismo,mas só quem é gay e/ou alcoólatra sabe o que passamos,mesmo porque gay mente compulsivamente.
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