O Globo
Está cada vez mais difícil encontrar palavras
que nos devolvam o sentido de responsabilidade
‘Palavras são minha matéria. Elas fazem coisas, mudam coisas, formam ondas contínuas’, garante o belo manifesto de 2016 da escritora Ursula K. Le Guin sobre a mágica do diálogo humano. Elas transformam tanto quem as pronuncia como quem as ouve, produzem energia e expandem o viver. Demandamos delas o que muitas vezes não podem carregar — a complexidade da experiência, a polifonia de vozes que habitam nosso interior. Tampouco a demanda por clareza em meio à névoa do viver. Quando palavras nos falham, quando essas peças pré-fabricadas se revelam pequenas demais para traduzir o intraduzível, falamos por meio do silêncio. Ou da arte.
Primo Levi começou a escrever o seminal “É
isto um homem?” em dezembro de 1945, imediatamente depois de retornar do campo
de Auschwitz para sua Turim natal, num “impulso violento e imediato”, como
indicou no prefácio da época. Iniciou pelo último capítulo, que trata dos dez
dias entre a derrocada dos nazistas e a chegada dos russos que libertaram o
campo. O manuscrito enviado à editora italiana Einaudi acabou rejeitado por
ninguém menos que Natalia Ginzburg, mas o escritor compreendeu: a negativa fora
expressão de uma rejeição coletiva e ampla. Naquele imediato Pós-Guerra,
viveu-se “um tempo de esquecimento voluntário, de relação conflituosa entre a
memória e o olvido”. Ao contrário do que havia ocorrido ao final da Grande
Guerra de 1914-18, cuja memória coletiva logo se espraiou e alterou
comportamentos no continente europeu, na barbárie seguinte deu-se o contrário.
A torrente inicial de relatos feitos por sobreviventes permaneceu desestimulada
por quase duas décadas.
No relato de Levi, as vítimas nem sempre
morrem, simplesmente vão se apagando, desaparecem. Uma cena descreve o raro
enforcamento público de um prisioneiro que participara de um levante no campo
de Birkenau, cuja punição, paradoxalmente, conseguiu devolver-lhe humanidade e
identidade.
Meses atrás o editor israelense Noam Sheizaf
debruçou-se sobre uma nova versão em hebraico de “É isto um homem?” para
refletir sobre a desumanização crescente e contínua de lá para cá. Houve o
genocídio cometido pelo governo de Ruanda em 1994 (quase
1 milhão de tútsis chacinados em apenas três meses), houve o massacre de 8.372
meninos e homens muçulmanos na Bósnia enquanto fugiam de olhos vendados e mãos
amarradas pelos rios, floresta e campos de Srebrenica, há a metódica asfixia do
viver e ser palestino em Gaza. Com a separação em
curso entre humanidade e ser humano, está cada vez mais difícil encontrar
palavras que nos devolvam o sentido de responsabilidade, envolvimento, um
mínimo de honestidade interior e consciência.
Exatamente uma semana atrás, no alto de uma
colina de Damasco,
capital da Síria, os portões da infame prisão política de Sednaya foram
derrubados a marretadas, em sequência ao golpe-relâmpago que implodiu a longeva
ditadura dos Assad. Daquela masmorra onde perto de 30 mil presos políticos
simplesmente sumiram e outros tantos foram declarados mortos, começaram a
emergir os sobreviventes de 53 anos de ditadura e 13 de guerra civil. Alguns
haviam perdido a memória, outros partes do corpo, muitos a própria alma. Em
sentido contrário, colina acima, uma fila cerrada de vultos acorreu em busca de
esperança — uma pista, um documento, algum vestígio de parente engolido há anos
pela engrenagem do regime deposto. Será preciso reaprender a falar, a usar a
palavra, a sair do silêncio, a apoiar-se na potência transformadora da arte.
O “presente” anunciado no título deste texto
é um convite, grátis (disponível no link).
Trata-se de um curta intitulado “AMA”, referência à milenar tradição japonesa
de mergulhadoras de pérolas. A música “Sarajevo”,
do compositor germano-britânico Max Richter, despedaça, enleva, perturba. Ela
conta o cerco estrangulador de três anos, dez meses, três semanas e três dias à
cidade bósnia na guerra civil iugoslava dos anos 1990. Julie Gautier, uma
artista francesa nascida na Ilha da Reunião,
interpreta a música num balé subaquático de seis minutos e meio ininterruptos,
sem ajuda de equipamento respiratório. Difícil não se deixar reumanizar diante
do belo. Vale a pena tentar para poder respirar de novo.
Falar das ligações do ditador da Síria com a turma do "amor" aqui no Brasil essa comunista omite, mas se ele tivesse trocado meia dúzia de palavras com Bolsonaro, ah nossa, seria o assunto do texto inteiro... Depois se fazem de desentendidos porque a população não confia mais na extrema imprensa.....
ResponderExcluirSua ignorância alimenta a insensibilidade, e vice-versa. Você certamente daria um "bom" carcereiro, seja em Treblinka ou na Síria.
ExcluirTexto doloroso de ser lido, mas é uma reflexão necessária. Pena que poucos tenham a disposição de ler e entender.
ResponderExcluirA autora nos brinda com um texto memorável, sutil, culto e denso. Esse texto exige uma leitura sensível e inteligente, exige que se possa suportar o que está aí apontado, sem perder a capacidade de uma interpretação serena e equilibrada dos fatos. Não é escrito para ignorantes raivosos, pois estes estarão sempre muito distantes de uma possibilidade de compreensão construtiva e nada serão capazes de elaborar a partir do que lhes é oferecido. Parabéns a autora pela elegância com que nos oferece material tão denso e doloroso!
ResponderExcluirSim, a colunista novamente tem profunda razão! Arte e silêncio são melhores respostas que palavras vazias, mentirosas, agressivas e até criminosas. Parabéns à colunista, pelo magnífico texto e pelas reflexões, e também ao blog, que nos brindou com este texto tão sensível e necessário.
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