O Estado de S. Paulo
O componente de indeterminação e
imprevisibilidade hoje se agudiza num mundo crescentemente hobbesiano, no qual
o tema da paz e da guerra adquire renovada urgência
O cerne da política internacional, destaca
Raymond Aron no seu clássico Paz e Guerra entre as Nações, são as relações
interestatais. Estas se dão no unificado campo diplomático de um sistema
internacional global, heterogêneo e descentralizado. Caracteriza-se pela
distribuição individual e assimétrica de poder entre os Estados e está permeado
pela vigência da situação-limite paz/guerra.
A guerra é aquela calamidade composta por todas as calamidades, como apontou o padre Antonio Vieira, e a guerra em andamento na Ucrânia e no Oriente Médio, pela indivisibilidade de seu impacto, torna visível a ameaça da sua recorrência histórica. Um dos seus desdobramentos é a deterioração dos muitos mecanismos de cooperação engendrados em função da necessidade de gestionar multilateralmente, com base na reciprocidade dos interesses, as complexas interdependências de um mundo planetário.
A ONU é um grande paradigma do esforço de
lidar com as interdependências e os conflitos pelos caminhos do
multilateralismo. Foi concebida como um institucionalizado centro de
coordenação entre os Estados, voltado para manter a paz e a segurança, desenvolver
as relações amistosas entre os Estados e promover a cooperação internacional. A
ONU não detém um poder de governança. É um tertius institucional de
intermediação e negociação entre os Estados-membros.
Conhecidas facetas do sistema internacional
enredam o alcance do multilateralismo, entre elas a pluralidade constitutiva
dos objetivos das políticas externas dos Estados-membros, que dificultam a
unidade da ação conjunta.
Entre estas pluralidades de objetivos dos
Estados, figuram, com maior ou menor ênfase, dependendo do desafio das
conjunturas e da especificidade dos Estados e suas sociedades: a segurança, a
afirmação do poderio, os interesses econômicos e de bem-estar, a
sustentabilidade ambiental e o papel da afirmação das ideias norteadoras da
conduta interna e internacional.
Da pluralidade dos objetivos da política
externa dos Estados provém uma constitutiva margem de imprevisibilidade na
dinâmica da vida internacional. Este componente de indeterminação e
imprevisibilidade hoje se agudiza num mundo crescentemente hobbesiano, no qual
o tema da paz e da guerra adquire renovada urgência.
Com efeito, as análises estratégicas do
pós-Segunda Guerra, que se prolongaram por um bom período no mundo pós guerra
fria, obedeciam à lógica de racionalidade do equilíbrio da dissuasão nuclear.
Foi o que levou à avaliação de que o sistema internacional, no seu cerne, se
caracterizou pela precária estabilidade da paz impossível, mas da guerra
improvável, para relembrar a formulação de Aron.
Este precário e esquivo equilíbrio está hoje
em questão. Vem inserindo no horizonte da humanidade a marcha da insensatez da
probabilidade da guerra, que é um camaleão que assume na sua indivisibilidade
novas formas que afetam todos.
Para o novo de uma crescente
imprevisibilidade e os seus riscos contribui não apenas a existência dos
conflitos de interesse, mas a prevalência desestabilizadora da lógica da
fragmentação das tensões. Atualmente, a tensão proeminente é a de hegemonia das
interações entre os EUA e a China, seus desdobramentos e articulações. Passam
pelo apoio da China e do Irã à Rússia na guerra da Ucrânia, que coloca em
questão, com alcance geral, a segurança europeia e a redefinição do papel da
Otan na qual se lastreia.
A tensão de hegemonia alimenta as tensões
regionais de equilíbrio, notadamente no conflito do Oriente Médio.
As tensões multiplicam-se pelo efeito da
prevalência da geografia das paixões em escala mundial e pelo vigor da
incidência organizatória da geopolítica. Este compromete o multilateralismo
comercial, preconizado pela OMC pelo alcance de uma geoeconomia. Esta, na sua
dinâmica, vem afastando critérios compartilhados da eficiência econômica global
e das virtudes pacificadoras do espírito do comércio. É o que resulta de uma
revigoradora ênfase no unilateralismo de critérios de segurança dos Estados,
indutores de várias modalidades das guerras comerciais.
São indicações de que a atual multipolaridade
não é estabilizadora da ordem mundial, mas sim propiciadora da erosão
sublevadora da previsibilidade dos acontecimentos e de prévios parâmetros do
aceitável, balizadores de limites na vida internacional – como, por exemplo, as
normas do direito humanitário em matéria de emprego da destrutividade das
armas.
Para concluir: vivemos num mundo
caracterizado pelos riscos manufaturados pela ação humana. Destes riscos a vida
internacional é um grande paradigma. Daí um empenho continuado dos Estados na
gestão de riscos que os afetam, inerentes à dinâmica do sistema internacional.
Riscos comportam esforços de mensuração, mas
o que apontei neste texto são os novos riscos do risco. É o que leva à
incerteza, que tem entre suas características, segundo os economistas, a
dificuldade da racionalidade da mensuração.
É a incerteza que deixa o juízo quase
incerto, como diz Camões, numa de suas grandes oitavas, ao “ver e notar do
mundo o desconcerto”.
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