Valor Econômico
Não há pilhas de projetos para obrigar o uso da linguagem neutra, mas há para a proibi-la, comenta Caetano Galindo
O professor Caetano W. Galindo, da
Universidade Federal do Paraná (UFPR), esteve em São Paulo no fim de outubro
para uma conferência na Fapesp. Ao entrar no hotel onde ficou hospedado, pediu
ao recepcionista um ferro para passar a camisa.
“Não temos o ferro no quarto, mas podemos
emprestá-lo ao senhor”, disse o atendente, em linguagem protocolar e culta. Mas
em seguida perguntou: “O senhor também precisa da ‘tauba’?” E logo corrigiu-se:
“Desculpe, precisa da tábua?”.
Galindo, linguista ultraliberal e autor do
livro “Latim em pó”, um sucesso de vendas lançado no ano passado, conta que
teve vontade de pegar a mão do recepcionista e dizer:
“Não, meu amigo, ‘tauba’ é mais legal. É uma adequação fonética previsível aos padrões da estrutura da língua portuguesa. ‘Tauba’ é palavra nossa, legítima. Tábua é o que é a variedade escolar europeizada, imposta pelas elites brasileiras que se mantiveram em estreito contato com Portugal no século XIX. Elas a trouxeram para o Brasil, a impuseram e depois criaram um sistema de educação para dizer que você não sabe falar a sua própria língua”.
É de uma crueldade, observa Galindo, olhar
para uma população inteira e tirar dela não só a autoestima, mas também a ideia
de que é falante perfeita de seu idioma. “Línguas são todas perfeitas, todas
dão conta de fazer tudo o que elas precisam fazer e de maneira criativa.”
O que o ilustre linguista acha da linguagem
neutra, pergunta uma estudante na plateia da Fapesp.
Sempre bem-humorado, o professor diz: se eu
voltar à universidade, em Curitiba, e disser que estive em uma entrevista e não
fui perguntado sobre isso, perderei o passaporte de professor.
Sua avaliação sobre a linguagem neutra não é
morfológica (morfologia, para quem esqueceu, é a parte da gramática que estuda
as palavras). Diz que a sociedade brasileira está interessadíssima em discutir
um fator gramatical, mas esse não é o assunto, e sim a questão de gênero.
Essa discussão, segundo o linguista, é a
“vingança do LGBTQIA+”. Quando o debate se concentra em uma questão morfológica
e a sociedade briga, nega e recusa, ela está concedendo o verdadeiro tento que
estava em jogo. Com a visibilização, todos se lembram que existem outras
pessoas não confortáveis com essa questão de gênero. Isso já aconteceu no
Brasil. E há um grupo que quer manter seu lugar, um estatuto de poder, e usa os
instrumentos de legislação, controle e sanção. Galindo cita uma curiosidade:
não há pilhas de projetos para obrigar o uso da linguagem neutra, mas há para
proibi-la.
Não existe relação causal entre formas de
inclusão de gênero e formas de manifestação dessas categorias nos idiomas.
Muitos idiomas não têm distinção de gênero em sociedades tremendamente cruéis
com as mulheres, lembra o professor. O turco, por exemplo, não tem distinção de
gênero nem na terceira pessoa. Não existe ele e ela. Todas os pronomes são
neutros na terceira pessoa. “E eu não gostaria de morar em Istambul se fosse
mulher”, afirma.
Há línguas que fazem o plural neutro no
feminino em sociedades onde as mulheres não são consideradas seres humanos
plenos. No português, fazemos o plural neutro no masculino. Por que é assim?
“É porque é”, responde Galindo. Em algum
momento lá atrás ficou assim e a gente acha isso perfeito e bonito por
natureza. Ele conta então que um amigo linguista americano guarda o passaporte
na gaveta de talheres em todas as casas que tem morado na vida adulta. Por quê?
Porque o primeiro apartamento para o qual ele mudou, na universidade, era muito
pequeno, não tinha lugar para nada e ele guardou o passaporte na gaveta de
talheres. Por causa disso esse é o lugar em que ele procura o passaporte. Pode
morar numa casa gigantesca, mas o passaporte vai ficar na gaveta de talheres.
O discurso linguístico de Galindo é
ultraliberal, mas até onde vai essa liberdade?
Ele é flexível na resposta. Diz que um país
do tamanho do Brasil precisa de mecanismos “perversos” de contenção, de
dicionário e de gramática, como a gente precisa de leis. O desafio é saber
quando essa voz faz sentido e quando a regra é obsoleta e bizarra.
Como aquelas leis que os vereadores, volta e
meia, têm que expurgar e jogar no lixo. Galindo dá um exemplo: “É proibido
amarrar asnos na avenida Paulista em São Paulo. Não há mais asnos na Paulista”
(“há controvérsias”, sussurra alguém na plateia). Ele também acha “uma falácia”
a ideia de que “criado-mudo” ou “fazer nas coxas” sejam expressões do tempo da
escravidão. Isso faz parte de uma polícia paranoica, do gramatiquês.
Exemplo de regra que ele sugere jogar no lixo
é a que proíbe usar pronomes átonos (me, te, se, lhe etc.) no começo da frase.
“Usamos isso há séculos no Brasil. Lhes digo uma coisa: a estrutura da língua
permite essa flexibilidade que em Portugal não é permitida.” Respeitar essa
regra, portanto, seria obedecer a algo desprovido de validade.
Duas frases resumem as falas do professor: o
que a linguística histórica e a sociolinguística nos ensinam sobre o português
do Brasil ou sobre qualquer outra língua é que a única realidade do idioma é a
alteração constante e a diversidade permanente; o sistema se autorregula e se
automantém por meio de mecanismos difusos entre todos os usuários.
Morfologia, na verdade, é o estudo das FORMAS. Aplicada à gramática, passou a ser o que o colunista escreveu. Mas outras Morfologias continuaram a ser o que eram: Morfologia aplicada à Botânica é o estudo das formas vegetais (de folhas, caules, etc.). Morfologia aplicada à Zoologia é o estudo das formas animais (corpos, membros, etc.). Também há a Geomorfologia (estudo das formas do ambiente físico) e outras que seguem baseadas no estudo dos distintos tipos de forma, em geral formas da matéria.
ResponderExcluirParabéns, Professer
ResponderExcluirOu é
ResponderExcluirParabéns, Professore?