quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

O milagre de Milei: menos salários, mais aplausos - Guilherme Frizzera*

Correio Braziliense

Perpetua-se um ciclo em que austeridade não resgata economias, mas aprisiona sociedades em um labirinto de desigualdades 

A política econômica de Javier Milei, fundamentada no ultraliberalismo e apresentada sob o rótulo de austeridade, tornou-se o novo experimento de um modelo que há décadas flerta com a eficiência econômica em detrimento do custo social. Embora tenha abandonado a retórica da dolarização, Milei mantém a ênfase em cortes drásticos de gastos públicos e reformas econômicas amplamente elogiadas por mercados e instituições financeiras internacionais. No entanto, as contradições de sua estratégia começam a se impor, com manchetes ressaltando que, "surpreendentemente", a economia argentina continua encolhendo mesmo após a implementação dessas medidas.

Enquanto a pobreza atinge 53% da população e o poder de compra dos salários caiu 10%, o ajuste fiscal é celebrado como sinal de responsabilidade. Clara Mattei, autora de A ordem do capital, argumenta que a austeridade é ideológica, não técnica, pois reforça hierarquias e justifica sacrifícios sociais em nome de um progresso ilusório. Em vez de corrigir desequilíbrios, a austeridade os aprofunda, precarizando serviços e agravando a pobreza, enquanto investidores ganham a curto prazo.

A história argentina oferece outro exemplo de como políticas de austeridade podem aprofundar crises. Durante o governo de De la Rúa, em 2001, os ajustes fiscais massivos, recomendados pelo FMI, culminaram em uma grave crise política e social, com tumultos, renúncia presidencial e aprofundamento da recessão. Essa memória recente torna ainda mais preocupante a insistência atual em medidas que desconsideram seus impactos sobre a maioria da população.

No Brasil, o pacote de cortes de gastos do governo Lula, apresentado pelo ministro Fernando Haddad, enfrenta um dilema semelhante. Embora se diferencie do radicalismo de Milei, as medidas também são avaliadas principalmente pelo impacto em índices fiscais e pela receptividade do mercado. Aqui, novamente, emerge a crítica de Mattei: políticas de austeridade, mesmo em versões mitigadas, continuam priorizando objetivos econômicos abstratos sobre as necessidades concretas da população.

O debate brasileiro reflete a dualidade entre responsabilidade fiscal e políticas sociais. No discurso oficial, o governo tenta equilibrar a busca por credibilidade perante o mercado com compromissos históricos de combate à pobreza e redução das desigualdades. Porém, o desafio persiste: até que ponto é possível harmonizar essas duas agendas sem reproduzir os mesmos erros já observados em outros contextos? A história sugere que, quando colocados em confronto, os interesses dos mercados tendem a prevalecer sobre os das maiorias. Aplausos!

O uso da palavra "surpreende" nas análises financeiras sobre o encolhimento argentino revela a miopia dessa abordagem. Não há surpresa quando economias encolhem sob austeridade. O verdadeiro "surpreendente" está em ignorar que custos humanos são consequências inevitáveis, não externalidades. Essa dissonância entre a retórica e os resultados concretos exemplifica o caráter ideológico da austeridade, apontado por Mattei: ao posicionar os cortes de gastos como solução inevitável, naturaliza-se o sofrimento como parte do progresso, pavimentando o caminho para o fascismo.

A defesa da austeridade costuma se ancorar na noção de eficiência. Governos são comparados a famílias ou empresas, que não podem gastar mais do que arrecadam. No entanto, essa analogia simplista ignora as particularidades do papel estatal. Enquanto famílias ajustam seus gastos para sobreviver, governos têm a responsabilidade de garantir bem-estar e fomentar desenvolvimento. Assim, cortar investimentos em áreas essenciais pode gerar economias imediatas, mas compromete a capacidade de crescimento sustentável a longo prazo.

Ao pedir sacrifícios em nome de ajustes fiscais, a austeridade reafirma-se como o "caminho da servidão", parafraseando Hayek. Contudo, esse novo caminho não é imposto por Estados controladores, mas por mercados que deliberadamente ignoram os custos humanos em sua busca incessante por eficiência econômica. Assim, perpetua-se um ciclo em que austeridade não resgata economias, mas aprisiona sociedades em um labirinto de desigualdades.

A experiência de Milei na Argentina, junto a outros exemplos históricos, deveria servir de alerta. Ajustes fiscais que ignoram os mais vulneráveis não são apenas insustentáveis, mas moralmente questionáveis.

*Mestre em ciências em integração da América Latina pela USP, doutor em relações internacionais pela UnB, professor e coordenador do curso de relações internacionais na Uninter

2 comentários:

  1. Análise PERFEITA!! Não conhecia o colunista, mas seu trabalho deve ser destacado. Parabéns ao autor, e ao blog por divulgar seu trabalho. Resumindo:
    "Governos são comparados a famílias ou empresas, que não podem gastar mais do que arrecadam. No entanto, essa analogia simplista ignora as particularidades do papel estatal. Enquanto famílias ajustam seus gastos para sobreviver, governos têm a responsabilidade de garantir bem-estar e fomentar desenvolvimento."
    Os mercados que exigem cortes de gastos públicos NÃO enxergam os pobres e nem querem saber das necessidades deles!

    ResponderExcluir
  2. Pode não ser a melhor indicação, mas sobre o declínio econômico argentino nos últimos 100 anos, sugiro uma boa reportagem da BBC sobre o assunto, de 2023.

    Entre os pontos que ajudariam a entender a derrocada argentina estão :

    • Desequilíbrios orçamentários do governo em diversos contextos;

    • reveses econômicos internos em decorrência de crises no cenário internacional;

    ,• crises institucionais, especialmente durante o regime militar.

    • a questão inflacionária, problema crônico do país ao longo de décadas.

    BBC Brasil:

    ( https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4n5e3jlpyno )

    ResponderExcluir

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.