Gramsci e o Brasil (março, 2004)
O golpe de Estado de 1964 ficará em nossa
História como um acontecimento de singular relevância. Os que colheram os
louros da vitória, como os que carregam o fardo da derrota entendem que há 40
anos houve uma profunda mudança de rumos na vida nacional. Daí a importância de
um exame mais acurado dos fatos que culminaram com a deposição de João Goulart
em 1964. Como participei ativamente naqueles episódios, vejo-me obrigado a
examinar a seguinte questão: quais os principais erros das forças derrotadas em
1964?
Creio que eles resultaram de uma análise
incorreta da correlação de forças. Erro gravíssimo que nos levou a não
traçarmos, como um elemento básico de nossa estratégia, a defesa da democracia. Que
elementos caracterizam a falsidade daquela apreciação que deu origem a tão
graves equívocos?
Para fundamentar minha tese, basta recapitular a evolução dos acontecimentos a partir de setembro de 1961. A derrota dos generais que tentaram impedir a posse de Goulart foi interpretada por nós como uma mudança profunda, de qualidade, na situação política do Brasil. E aquela análise foi calamitosa porque envolveu um juízo a respeito do papel das forças armadas na vida brasileira. Isto é, nos levou a considerar que elas não mais poderiam intervir na cena política, para defender um status quo injusto e antipopular, que secularmente beneficia um reduzido grupo de privilegiados.
Esse entendimento incorreto era reforçado por
dois argumentos. Primeiro, que existia nas forças armadas um forte
"esquema de oficiais nacionalistas" e, segundo, que o movimento dos
sargentos era um obstáculo ao desencadeamento de um golpe. Ademais,
exageravam-se os avanços da organização sindical e de sua capacidade de
paralisar o país na eventualidade de um golpe militar. Não é verdade que essa
foi a análise que proclamamos aos quatro ventos?
Além de lançarmos essa apreciação sobre o
quadro militar, que tão só estava alicerçada em nossos desejos e sonhos,
incorremos também no erro de não reconhecer que a vitória sobre a cúpula
militar fora alcançada, em 1961, porque então defendíamos a exigência do
respeito às normas constitucionais, porque naquela oportunidade desfraldamos
com firmeza a bandeira da democracia. Não acentuamos também que o fracasso dos
golpistas, naquele episódio, basicamente decorreu da divisão dentro das forças
armadas, mas que esta ruptura na cadeia de comando militar se devia à pressão
da opinião pública em favor da legalidade.
Com a posse de Goulart no Palácio do
Planalto, passamos a viver uma situação inédita no Brasil, pois assumiu a
presidência da República uma personalidade ligada às correntes populares e aos
meios sindicais, e que dialogava abertamente com os comunistas. Panorama que
resultava, em grande medida, de um fato inesperado, o gesto tresloucado da
renúncia de Jânio, mas que era determinado também pela ascensão vigorosa das
lutas populares e um impressionante processo de organização dos trabalhadores,
como, até então, nunca sucedera em nosso país.
Em sendo assim, como não podia deixar de ser,
esse cenário inédito turvou nossos juízos. De certa forma, houve uma embriaguez
causada pelo capitoso vinho da vitória.
Assim chegamos à antevéspera do golpe. No
curso de 1963 defrontamos um cenário ambivalente, complexo e contraditório. De
um lado, os resultados do plebiscito, para decidir sobre a vigência ou não do
parlamentarismo, nos favoreceram, mas eram mais ou menos previstos, porque a
opinião majoritária dos brasileiros repudiava aquele remendo ad hoc da
Constituição. E, naquela altura, os diversos aspirantes à presidência da
República desejavam enterrar rapidamente o parlamentarismo de fancaria.
Então, Goulart assumiu os poderes vigentes no
regime presidencialista. Porém, o quadro foi se modificando com rapidez, e o
governo começou a perder o apoio de diversas forças políticas e sociais.
Recorde-se que, nas eleições de 1962, para alguns governos estaduais,
excluindo-se Pernambuco e o Estado do Rio, as correntes mais retrógradas
venceram nas principais unidades da Federação. Ademais, naquela época, a viagem
de Goulart aos Estados Unidos foi um duplo fracasso, pois não conseguiu amainar
nossos conflitos com a mais forte potência do mundo.
Uma agenda foi apresentada por Goulart ao
Congresso, formulando como pontos essenciais a realização de várias mudanças
substanciais no país, na base de um plano elaborado por Celso Furtado. Mas tudo
dependeria da aprovação do Poder Legislativo. E qual era a posição dos partidos
no Senado e na Câmara do Deputados?
O PSD, partido com o maior número de votos
nas duas casas do Parlamento, afinado com suas bases tradicionais, evoluiu para
uma postura de resistência à política do governo. Tal fato ocorreu por duas
razões: primeiro, porque não via com bons olhos as propostas radicais do
governo, notadamente a reforma agrária; em segundo lugar, porque depreendeu que
o governo estava preso numa armadilha e mais cedo ou mais tarde tumultuaria o
processo da sucessão presidencial.
A UDN, que dispunha de grande força no
Congresso e no cenário nacional, mobilizou-se de forma compacta na campanha
contra Goulart, passando a realizar um trabalho de aliciamento de chefes
militares para o golpe de Estado.
O PTB e os partidos e grupos de esquerda, em
seu conjunto, eram influenciados pelas lutas populares e sindicais e
consideravam como essencial acelerar o processo de mudanças fundamentais na
vida brasileira. Por isso não firmaram uma posição nítida, unitária e vigorosa
para enfrentar as ameaças que pairavam no horizonte. Recorde-se, por exemplo,
que, dois meses antes do golpe, a direção do PCB declarou que esse partido
situava-se como "oposição ao governo de Goulart", argumentando que
este desenvolvia uma política de conciliação com setores políticos não
comprometidos com as reformas.
Resumindo, por diversos razões, não havia a
menor possibilidade de se obter no Congresso a aprovação das medidas
solicitadas por Goulart. Em consequência, pairava no ar a suspeita de que o
governo acabaria por intentar um golpe de Estado, a fim de impor "na
marra", conforme se dizia, as reformas de base e mudanças constitucionais
relacionadas com a eleição do futuro presidente da República.
Mas o que selou, em definitivo, a nossa
derrocada foi um dado crucial na vida política brasileira - o encaminhamento da
sucessão presidencial, que deveria acontecer em 1965. Como as correntes
políticas se colocaram nessa questão? O governo Goulart via aproximar-se a hora
da sucessão e não estava preparado para enfrentá-la. Não dispunha de candidato
capaz de derrotar Carlos Lacerda. As forças populares vetavam o candidato do
PSD (Juscelino Kubitschek), por considerar sua eleição como um retrocesso
inconcebível. Leonel Brizola era inelegível e muito radical para diversas
forças que compunham o governo. O mais grave, porém, foi o entendimento surgido
de que a melhor solução seria a tentativa de reeleger João Goulart, o que não
era permitido por normas constitucionais.
Assim, a nau da insensatez continuou a marcha
para o desastre total. Sucedeu tudo o que poderia acontecer para desgastar e
isolar o governo Goulart: em 1963, a inflação se transformou em hiperinflação,
e houve um decréscimo do produto nacional per capita; os Estados Unidos
começaram a estimular o golpe de Estado; houve também uma despudorada campanha
contra o governo constitucional nos meios de comunicação, ofensiva financiada
por empresas estrangeiras. Devido a essas atividades, nossos adversários obtiveram
o apoio de amplos setores da população, assustados com a violenta pregação
anticomunista, acionada por destacadas personalidades católicas. Enfim, todas
as correntes reacionárias juntaram suas forças para desmoralizar o governo e
com audácia deram pleno respaldo à conspiração nos quartéis.
O governo e as correntes populares reagiram
de forma tumultuada e confusa. Erros sucessivos eram cometidos na condução dos
assuntos administrativos e políticos. Ao invés de tranquilizar a nação, o
governo subia o tom das ameaças. Ao mesmo tempo, as ações aventureiras, como a
revolta dos sargentos e dos marinheiros, isolaram os militares legalistas e o
governo, pois justificaram as acusações de que partia do Palácio do Planalto a
quebra da hierarquia e da disciplina nas forças armadas.
Na undécima hora, houve uma tentativa de
evitar a tragédia: o projeto de San Tiago Dantas de estruturar a "Frente
Ampla". Como é sabido, esse plano fracassou, pois foi impossível obter a
concordância das forças progressistas e das correntes colocadas no centro do
espectro político, como o PSD, em torno de um programa comum de reformas.
Contudo, esse não foi o óbice que jogou por terra o projeto da "Frente
Ampla". Ele estava previamente condenado ao insucesso por uma razão
elementar: tudo dependia, na verdade, de um acerto sobre a sucessão
presidencial. Ou seja, uma aglutinação de esforços em favor da candidatura de
Kubitschek.
Por termos confundido as nuvens com Juno, o
resultado foi inexorável e terrível. A conspiração dos golpistas foi
rapidamente vitoriosa, conseguindo imobilizar ou neutralizar os militares que
defendiam a legalidade, mesmo porque os generais já haviam conquistado
previamente o respaldo de forças majoritárias no cenário político e no plano
internacional, graças ao interesse direto dos Estados Unidos em impedir que o
Brasil começasse a percorrer um caminho semelhante ao de Cuba.
Para se entender o contraditório quadro que
facilitou o sucesso vertiginoso do golpe, não se pode esquecer que uma
personalidade democrática, como Ulysses Guimarães, não combateu a deposição de
Goulart. Dado que comprova como nós nos isolamos, abrindo os flancos para a
ação dos golpistas, interessados vitalmente em impedir o avanço das lutas
populares no Brasil.
De início, nos primeiros dias de abril,
parecia até que apenas ocorrera a derrubada de um presidente da República, como
sucedeu em 1945 (com Vargas) ou em 1955 (com a deposição de Carlos Luz e Café
Filho). Logo, porém, ficou claro que as forças vitoriosas estavam empenhadas
numa alteração profunda no regime político. A radicalidade do plano dos
militares que assaltaram o Poder decorreu do fato de que as correntes
reacionárias sentiram-se profundamente ameaçadas diante da iminência de medidas
que atingiam seus interesses, face ao crescimento impetuoso das lutas populares
e de um processo de organização dos trabalhadores nunca antes visto em nossa
pátria. Assim, passo a passo os militares foram eliminando a ordenação
constitucional de 1946, implantando uma ditadura militar, que sobreviveu
durante mais de duas décadas.
O que aprendemos com o golpe de 64 e com a
ditadura militar? Em minha opinião, nos anos de chumbo, vivendo dolorosas
experiências, assistindo ao amordaçamento de milhões de brasileiras e
brasileiros, vimo-nos forçados a aprender uma duríssima lição: a de que, acima
de tudo, o essencial é a conquista de um regime democrático. E que essa é
a questão sine qua non, inclusive para traçarmos a caminhada na direção de
uma outra sociedade, uma sociedade melhor e mais justa.
Passados 40 anos, esse retrospecto provoca a
emergência de sentimentos contraditórios. Há sensação de culpa, pois, nessa
travessia dos tempos, inúmeros combatentes, homens e mulheres da melhor
qualidade, não sobreviveram. Contraditoriamente, o país cresceu, não ficou
paralisado, mas consolidou-se uma sociedade absurdamente injusta. Portanto,
muitos anos foram perdidos na marcha pelo desenvolvimento social do Brasil,
pela melhoria de imensas camadas de nosso povo, gente sofrida e espoliada.
Resta agora tão só um consolo, o de que muito aprendemos, especialmente, sobre o profundo significado da conquista de um regime democrático nestas terras, democracia ampla, sólida e estável. Esse é o consolo que hoje nos agasalha e que nos cumpre preservar.
*Marco Antônio Tavares Coelho (1926 - 2015), jornalista e editor-executivo de Estudos Avançados, órgão do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. Comunista, foi eleito deputado federal em 1962. Seu mandato foi cassado em abril de 1964. Este texto foi preparado para um seminário promovido pelo Centro de Filosofia e Ciências, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, intitulado "64 + 40: Golpe e Campo(u)s de Resistência", no dia 29 de março de 2004.
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