O Globo
Jimmy Carter, o melhor ex-presidente da
História dos Estados
Unidos, terá seu funeral de Estado na quinta-feira. Trump prometeu
comparecer. Há, na desafortunada Presidência do democrata, uma lição preciosa
para o chefe do Maga.
Carter, homem de convicções morais, escolheu
o pragmatismo na hora de confrontar os grandes dilemas geopolíticos de sua
época. Seguindo o rastro de seu antecessor republicano, o sombrio Nixon,
consolidou a aproximação com a China, estabelecendo
relações diplomáticas e reconhecendo o princípio de “uma China”. Por meio
daquele gesto, os Estados Unidos enterraram a ideia de independência de Taiwan, em troca do
compromisso tácito chinês de não invadir a ilha rebelde.
Sob a inspiração de Kissinger, Nixon aproveitou a oportunidade de aprofundar a cisão entre China e URSS. Carter concluiu o edifício da parceria, convencido de que o país pós-maoista ainda miserável estava destinado a restaurar sua grandeza de outrora.
A antevisão de Carter realizou-se por
completo. Contudo, menos de meio século depois, desenrola-se uma “segunda
Guerra Fria” entre Estados Unidos e China. De “parceira e rival”, na definição
de Obama, a potência asiática converteu-se em “inimigo estratégico”, segundo o
consenso bipartidário explicitado por Trump e Biden. Na sua campanha vitoriosa,
Trump ergueu a espada de tarifas punitivas contra as exportações chinesas e,
ainda, de um aperto adicional no parafuso das sanções contra a indústria
chinesa de alta tecnologia.
A “segunda Guerra Fria”, explicam analistas
americanos, começou com a ascensão de Xi Jinping, em 2012, e a projeção de
poder militar da China nos mares do seu entorno. A guerra imperial movida
pela Rússia na
Ucrânia desencadeou uma confrontação mais ampla e aguda. O Ocidente, ensina-se
em Washington, enfrenta um certo Quarteto do Caos — ou, numa expressão didática
alternativa, o pacto do Crink (China, Rússia, Irã e Coreia do
Norte). É com base nesse raciocínio que o Japão solicita aos
Estados Unidos uma “Otan do Pacífico”.
Profecias geopolíticas tendem a se
autorrealizar. O cerco à China impulsionado por Trump e Biden estreitou as
relações entre a grande potência asiática e os demais integrantes do Crink —
mas isso não significa interesses nacionais alinhados.
A China não é a antiga URSS. Sua prosperidade
e influência repousam sobre um sistema aberto de comércio e investimentos.
Pequim almeja reformar a ordem internacional, não destruí-la. A aventura russa
na Ucrânia ameaça suas extensas relações econômicas com a União Europeia — e,
por isso, apesar da retórica sobre uma “aliança estratégica”, o regime chinês
abstém-se de entregar armamentos à Rússia.
A parceria militar da Coreia do Norte com o
Kremlin, que já abrange uma força expedicionária norte-coreana no front
ucraniano, reduz a influência chinesa sobre o vizinho e ativa alarmes na Coreia do Sul e
no Japão. Mais: a política desestabilizadora do Irã no Oriente Médio não conta
com o amparo da China, que precisa manter acesso aos recursos petrolíferos
vitais dos exportadores árabes.
Em meio à paisagem confrontacional, não é
difícil identificar focos potenciais de colaboração entre China e Estados
Unidos. As duas potências compartilham o interesse de conter a espiral de
desordem que dissemina o caos no Oriente Médio e em vastas áreas da África.
Paralelamente, interessa a ambas estabelecer regras estáveis de competição nos
campos vitais da inteligência artificial, da corrida à nova geração de
armamentos e da exploração espacial.
— O povo nos dois lados do Estreito de Taiwan
forma uma família. Ninguém pode cortar nossos laços familiares ou interromper a
tendência histórica de reunificação nacional.
É exagero traduzir o discurso de Ano-Novo de
Xi Jinping como ameaça bélica. As palavras do líder chinês deveriam ser lidas
como uma mensagem aspiracional inscrita no terreno delimitado pelo Comunicado
de Xangai, o documento firmado na visita histórica de Nixon, em 1972.
Quando o esquife de Carter descer à tumba,
Trump terá uma escolha a fazer. A “segunda Guerra Fria” serve a Putin, mas não
aos Estados Unidos ou à China.
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