segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Diante do Quarteto do Caos – Demétrio Magnoli

O Globo

Jimmy Carter, o melhor ex-presidente da História dos Estados Unidos, terá seu funeral de Estado na quinta-feira. Trump prometeu comparecer. Há, na desafortunada Presidência do democrata, uma lição preciosa para o chefe do Maga.

Carter, homem de convicções morais, escolheu o pragmatismo na hora de confrontar os grandes dilemas geopolíticos de sua época. Seguindo o rastro de seu antecessor republicano, o sombrio Nixon, consolidou a aproximação com a China, estabelecendo relações diplomáticas e reconhecendo o princípio de “uma China”. Por meio daquele gesto, os Estados Unidos enterraram a ideia de independência de Taiwan, em troca do compromisso tácito chinês de não invadir a ilha rebelde.

Sob a inspiração de Kissinger, Nixon aproveitou a oportunidade de aprofundar a cisão entre China e URSS. Carter concluiu o edifício da parceria, convencido de que o país pós-maoista ainda miserável estava destinado a restaurar sua grandeza de outrora.

A antevisão de Carter realizou-se por completo. Contudo, menos de meio século depois, desenrola-se uma “segunda Guerra Fria” entre Estados Unidos e China. De “parceira e rival”, na definição de Obama, a potência asiática converteu-se em “inimigo estratégico”, segundo o consenso bipartidário explicitado por Trump e Biden. Na sua campanha vitoriosa, Trump ergueu a espada de tarifas punitivas contra as exportações chinesas e, ainda, de um aperto adicional no parafuso das sanções contra a indústria chinesa de alta tecnologia.

A “segunda Guerra Fria”, explicam analistas americanos, começou com a ascensão de Xi Jinping, em 2012, e a projeção de poder militar da China nos mares do seu entorno. A guerra imperial movida pela Rússia na Ucrânia desencadeou uma confrontação mais ampla e aguda. O Ocidente, ensina-se em Washington, enfrenta um certo Quarteto do Caos — ou, numa expressão didática alternativa, o pacto do Crink (China, Rússia, Irã e Coreia do Norte). É com base nesse raciocínio que o Japão solicita aos Estados Unidos uma “Otan do Pacífico”.

Profecias geopolíticas tendem a se autorrealizar. O cerco à China impulsionado por Trump e Biden estreitou as relações entre a grande potência asiática e os demais integrantes do Crink — mas isso não significa interesses nacionais alinhados.

A China não é a antiga URSS. Sua prosperidade e influência repousam sobre um sistema aberto de comércio e investimentos. Pequim almeja reformar a ordem internacional, não destruí-la. A aventura russa na Ucrânia ameaça suas extensas relações econômicas com a União Europeia — e, por isso, apesar da retórica sobre uma “aliança estratégica”, o regime chinês abstém-se de entregar armamentos à Rússia.

A parceria militar da Coreia do Norte com o Kremlin, que já abrange uma força expedicionária norte-coreana no front ucraniano, reduz a influência chinesa sobre o vizinho e ativa alarmes na Coreia do Sul e no Japão. Mais: a política desestabilizadora do Irã no Oriente Médio não conta com o amparo da China, que precisa manter acesso aos recursos petrolíferos vitais dos exportadores árabes.

Em meio à paisagem confrontacional, não é difícil identificar focos potenciais de colaboração entre China e Estados Unidos. As duas potências compartilham o interesse de conter a espiral de desordem que dissemina o caos no Oriente Médio e em vastas áreas da África. Paralelamente, interessa a ambas estabelecer regras estáveis de competição nos campos vitais da inteligência artificial, da corrida à nova geração de armamentos e da exploração espacial.

— O povo nos dois lados do Estreito de Taiwan forma uma família. Ninguém pode cortar nossos laços familiares ou interromper a tendência histórica de reunificação nacional.

É exagero traduzir o discurso de Ano-Novo de Xi Jinping como ameaça bélica. As palavras do líder chinês deveriam ser lidas como uma mensagem aspiracional inscrita no terreno delimitado pelo Comunicado de Xangai, o documento firmado na visita histórica de Nixon, em 1972.

Quando o esquife de Carter descer à tumba, Trump terá uma escolha a fazer. A “segunda Guerra Fria” serve a Putin, mas não aos Estados Unidos ou à China.

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