terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Gastança e especulação -Luiz Gonzaga Belluzzo

Valor Econômico

Nas profundezas do processo de criação de valor e geração de rendimentos está o demônio da liquidez

Esparramados nos jornais e salpicados nos debates televisivos, editoriais, artigos e matérias de economia tocam o realejo da “gastança” e da “especulação”.

Começamos com a gastança. Marx, Keynes e Schumpeter desvendaram entre as funções dinheiro sua forma capitalista de riqueza-potência, a ponte que enseja a passagem para o futuro.

Ademais de um meio de circulação de mercadorias e ativos existentes, o dinheiro em sua forma capitalista é, sobretudo, uma aposta na geração e acumulação de riqueza futura, o que envolve a aquisição de meios de produção com o propósito de capturar um valor monetário acima do que foi gasto. Se não há aposta na criação de riqueza futura, não há gasto e, se não há gasto, o circuito da renda monetária fenece.

Crédito e dívida são essencialmente formas de criação de moeda como riqueza potencial. Isso significa que, no capitalismo, o dinheiro não se limita a facilitar a troca de mercadorias e serviços, mas engendra sistematicamente a multiplicação de ativos na economia. Assim devemos considerar a construção de uma nova fábrica ou as apostas nos mercados futuros que cuidam da flutuação de preços dos ativos subjacentes, tais como commodities, juros e câmbio. Sempre de olho no futuro.

Assim, pedimos licença para prosseguir na companhia da senhora Especulação.

Nos anos 1920, Keynes operou com perdas e ganhos nos mercados futuros e opções de commodities. Nesse período, estabeleceu uma distinção entre jogo e especulação. Jogo aplica-se a situações em que o risco não é calculável ou não distribuído normalmente, como o jogo da roleta. Especulação aplica-se a situações em que o risco é calculável e normalmente distribuído, como o seguro de vida. O critério de divisão está na quantidade de conhecimento possuída pelo agente em ambos os casos: “A posse de conhecimento superior [é] a distinção vital entre o especulador e o jogador”.

Se não há aposta na criação de riqueza futura, não há gasto e, se não há gasto, o circuito da renda monetária fenece

No correr dos anos, Maynard abandonou sua convicção acerca do conhecimento superior dos “especuladores” e consolidou suas convicções a respeito da natureza “coletiva” da avaliação da riqueza movida pela senhora Especulação nas economias de mercado capitalistas: “O investidor profissional é forçado a preocupar-se com a antecipação das variações iminentes, nas notícias ou no clima geral, do tipo das que, pela experiência, são as que exercem maior influência sobre a psicologia de massas do mercado.”

As convenções - a psicologia de massas dos mercados - estão abrigadas no espírito dos investidores. Na economia monetária da produção, as convenções desempenham um papel crucial na formação de preços dos ativos, “reais” e financeiros. A avaliação dessas formas de riqueza está submetida à taxa monetária de juros, incumbida de descontar rendimentos esperados.

Nas profundezas do processo de criação de valor e geração de rendimentos está o demônio da liquidez. Para ser conciso, qualquer ativo de riqueza, como, por exemplo, uma fábrica ou uma plataforma de entrega de comida, é avaliado pela capacidade de suas traquitanas materiais de gerar um valor monetário. Assim também, e não por acaso, os valores que circulam nos mercados financeiros estão permanentemente ameaçados pela dimensão perversa que habita a alma do demônio da liquidez, sempre pronto a infernizar os que não conseguem assegurar, diante dos demais, a valorização monetária de seus ativos.

Para Keynes, a incerteza radical é o estado permanente sobre o qual repousam as decisões inexoravelmente “especulativas” que regem o investimento e as apostas financeiras em uma economia capitalista: “O fato mais destacado na matéria é a extrema precariedade dos dados em que terão de basear-se os nossos cálculos de rendimentos prováveis. O nosso conhecimento dos fatores que governarão o rendimento de um investimento alguns anos mais tarde é, em geral, muito limitado e, com frequência, desdenhável. Para falar com franqueza, temos de admitir que as bases de nosso conhecimento para calcular o rendimento provável, nos próximos dez anos ou mesmo cinco anos, de uma estrada de ferro, uma mina de cobre, uma fábrica de tecidos, um produto farmacêutico patenteado, uma linha transatlântica de navios ou um imóvel na City de Londres se reduzem a bem pouco e às vezes a nada.”

Diante da incerteza radical, os detentores de riqueza são compelidos a tomar decisões apoiados em convenções a respeito das perspectivas da economia. Keynes sugere que as decisões individuais dos agentes só podem se apoiar no que eles imaginam que sejam as opiniões dos demais.

No capítulo XII da Teoria Geral, os concursos de beleza promovidos pelos jornais servem de exemplo para descrever a formação de convenções nos mercados de ativos. Os leitores são instados a escolher os seis rostos mais bonitos entre uma centena de fotografias. O prêmio será entregue àquela cuja escolha esteja mais próxima da média das opiniões. Não se trata, portanto, de apontar o rosto mais bonito na opinião de cada um dos participantes, mas, sim, de escolher o rosto que mais se aproxima da opinião dos demais.

Keynes, desse modo, introduz na teoria econômica as relações complexas entre Estrutura e Ação, entre papéis sociais e sua execução pelos indivíduos convencidos de sua liberdade e autodeterminação, mas, de fato, enredados nas engrenagens da sociabilidade monetária.

Nas pradarias da teoria econômica dominante vislumbramos, sentados em suas selas, os cavaleiros do Equilíbrio Intertemporal a conduzir suas alimárias almejando suaves trepidações: os indivíduos baseiam suas decisões em expectativas racionais, os mercados são bem organizados e o sistema de preços, rígidos ou flexíveis, funciona para alocar eficientemente os recursos.

As flutuações da economia em torno de sua trajetória de equilíbrio decorrem de “choques exógenos”, como mudanças tecnológicas ou na preferência dos consumidores. Os mecanismos automáticos de ajuste operam forte e rapidamente, a moeda é neutra, pois está despida da demoníaca função reserva de valor - o inferno da liquidez - que castiga os cavaleiros com a danação especulativa.

A alimária jamais começa a saltar, está sempre apaziguada nas rédeas do cavaleiro racional.

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