Valor Econômico
Nas profundezas do processo de criação de valor e geração de rendimentos está o demônio da liquidez
Esparramados nos jornais e salpicados nos
debates televisivos, editoriais, artigos e matérias de economia tocam o realejo
da “gastança” e da “especulação”.
Começamos com a gastança. Marx, Keynes e
Schumpeter desvendaram entre as funções dinheiro sua forma capitalista de
riqueza-potência, a ponte que enseja a passagem para o futuro.
Ademais de um meio de circulação de
mercadorias e ativos existentes, o dinheiro em sua forma capitalista é,
sobretudo, uma aposta na geração e acumulação de riqueza futura, o que envolve
a aquisição de meios de produção com o propósito de capturar um valor monetário
acima do que foi gasto. Se não há aposta na criação de riqueza futura, não há
gasto e, se não há gasto, o circuito da renda monetária fenece.
Crédito e dívida são essencialmente formas de criação de moeda como riqueza potencial. Isso significa que, no capitalismo, o dinheiro não se limita a facilitar a troca de mercadorias e serviços, mas engendra sistematicamente a multiplicação de ativos na economia. Assim devemos considerar a construção de uma nova fábrica ou as apostas nos mercados futuros que cuidam da flutuação de preços dos ativos subjacentes, tais como commodities, juros e câmbio. Sempre de olho no futuro.
Assim, pedimos licença para prosseguir na
companhia da senhora Especulação.
Nos anos 1920, Keynes operou com perdas e
ganhos nos mercados futuros e opções de commodities. Nesse período, estabeleceu
uma distinção entre jogo e especulação. Jogo aplica-se a situações em que o
risco não é calculável ou não distribuído normalmente, como o jogo da roleta.
Especulação aplica-se a situações em que o risco é calculável e normalmente
distribuído, como o seguro de vida. O critério de divisão está na quantidade de
conhecimento possuída pelo agente em ambos os casos: “A posse de conhecimento
superior [é] a distinção vital entre o especulador e o jogador”.
Se não há aposta na criação de riqueza
futura, não há gasto e, se não há gasto, o circuito da renda monetária fenece
No correr dos anos, Maynard abandonou sua
convicção acerca do conhecimento superior dos “especuladores” e consolidou suas
convicções a respeito da natureza “coletiva” da avaliação da riqueza movida
pela senhora Especulação nas economias de mercado capitalistas: “O investidor
profissional é forçado a preocupar-se com a antecipação das variações
iminentes, nas notícias ou no clima geral, do tipo das que, pela experiência,
são as que exercem maior influência sobre a psicologia de massas do mercado.”
As convenções - a psicologia de massas dos
mercados - estão abrigadas no espírito dos investidores. Na economia monetária
da produção, as convenções desempenham um papel crucial na formação de preços
dos ativos, “reais” e financeiros. A avaliação dessas formas de riqueza está
submetida à taxa monetária de juros, incumbida de descontar rendimentos
esperados.
Nas profundezas do processo de criação de
valor e geração de rendimentos está o demônio da liquidez. Para ser conciso,
qualquer ativo de riqueza, como, por exemplo, uma fábrica ou uma plataforma de
entrega de comida, é avaliado pela capacidade de suas traquitanas materiais de
gerar um valor monetário. Assim também, e não por acaso, os valores que
circulam nos mercados financeiros estão permanentemente ameaçados pela dimensão
perversa que habita a alma do demônio da liquidez, sempre pronto a infernizar os
que não conseguem assegurar, diante dos demais, a valorização monetária de seus
ativos.
Para Keynes, a incerteza radical é o estado
permanente sobre o qual repousam as decisões inexoravelmente “especulativas”
que regem o investimento e as apostas financeiras em uma economia capitalista:
“O fato mais destacado na matéria é a extrema precariedade dos dados em que
terão de basear-se os nossos cálculos de rendimentos prováveis. O nosso
conhecimento dos fatores que governarão o rendimento de um investimento alguns
anos mais tarde é, em geral, muito limitado e, com frequência, desdenhável.
Para falar com franqueza, temos de admitir que as bases de nosso conhecimento
para calcular o rendimento provável, nos próximos dez anos ou mesmo cinco anos,
de uma estrada de ferro, uma mina de cobre, uma fábrica de tecidos, um produto
farmacêutico patenteado, uma linha transatlântica de navios ou um imóvel na
City de Londres se reduzem a bem pouco e às vezes a nada.”
Diante da incerteza radical, os detentores de
riqueza são compelidos a tomar decisões apoiados em convenções a respeito das
perspectivas da economia. Keynes sugere que as decisões individuais dos agentes
só podem se apoiar no que eles imaginam que sejam as opiniões dos demais.
No capítulo XII da Teoria Geral, os concursos
de beleza promovidos pelos jornais servem de exemplo para descrever a formação
de convenções nos mercados de ativos. Os leitores são instados a escolher os
seis rostos mais bonitos entre uma centena de fotografias. O prêmio será
entregue àquela cuja escolha esteja mais próxima da média das opiniões. Não se
trata, portanto, de apontar o rosto mais bonito na opinião de cada um dos
participantes, mas, sim, de escolher o rosto que mais se aproxima da opinião
dos demais.
Keynes, desse modo, introduz na teoria
econômica as relações complexas entre Estrutura e Ação, entre papéis sociais e
sua execução pelos indivíduos convencidos de sua liberdade e autodeterminação,
mas, de fato, enredados nas engrenagens da sociabilidade monetária.
Nas pradarias da teoria econômica dominante
vislumbramos, sentados em suas selas, os cavaleiros do Equilíbrio Intertemporal
a conduzir suas alimárias almejando suaves trepidações: os indivíduos baseiam
suas decisões em expectativas racionais, os mercados são bem organizados e o
sistema de preços, rígidos ou flexíveis, funciona para alocar eficientemente os
recursos.
As flutuações da economia em torno de sua
trajetória de equilíbrio decorrem de “choques exógenos”, como mudanças
tecnológicas ou na preferência dos consumidores. Os mecanismos automáticos de
ajuste operam forte e rapidamente, a moeda é neutra, pois está despida da
demoníaca função reserva de valor - o inferno da liquidez - que castiga os
cavaleiros com a danação especulativa.
A alimária jamais começa a saltar, está sempre apaziguada nas rédeas do cavaleiro racional.
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