quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Maduro expõe fissuras na esquerda - Wilson Gomes

Folha de S. Paulo

Lula percebeu o quanto sua defesa de ditadores esquerdistas favorecia os seus adversários

Em algum momento do semestre passado, Lula percebeu o quanto sua constante defesa de ditadores de esquerda, seu negacionismo diante do desmonte acelerado de instituições democráticas liderado por aliados de esquerda e sua complacência com violações de direitos humanos em países "resistentes ao imperialismo" favoreciam seus adversários.

Adotou, então, uma postura mais cautelosa: distanciou-se de Daniel Ortega, evitou ungir Nicolás Maduro em sua autoproclamada vitória e até endossou a pressão internacional para que fossem apresentadas as atas eleitorais venezuelanas. Pelo que se conhece de Lula, esse esforço de autocontenção não deve ter sido fácil.

Na formação política de Lula, a esquerda é definida por uma premissa central e algumas convicções. A premissa é que a igualdade política garantida pela democracia deve ser usada para promover igualdade ou justiça social. Isso remonta à Revolução Francesa, muito antes do surgimento do marxismo: ser de esquerda é lutar para superar a desigualdade por dever de justiça.

Além disso, há um pacote de convicções típicas da esquerda marxista de primeira geração: a crença de que as forças genuínas da sociedade estão na base social (basismo); a ideia de que propriedade e lucro são frutos da exploração do trabalhador (anticapitalismo); a defesa do alinhamento e simpatia automáticos com as formas de luta dos trabalhadores (trabalhismo); a priorização da igualdade social sobre a igualdade política e as liberdades individuais; e a visão de que o imperialismo capitalista é o grande inimigo da humanidade (anti-imperialismo seletivo).

Com esse conjunto de crenças, é compreensível o custo de se distanciar de regimes como os de VenezuelaNicarágua ou Cuba. Um democrata não teria qualquer dificuldade: são autocracias. Mas, quando a igualdade social é colocada acima da igualdade política e dos direitos individuais, a decisão se torna muito menos óbvia.

Caciques do PT, por exemplo, não se desviaram do seu alinhamento com seus autocratas preferidos. Afinal, ser de esquerda é mais importante do que ser democrata. E a "democracia que está aí" nunca foi a verdadeira democracia, que só será alcançada com o advento do socialismo. Por isso aceitou prontamente a eleição de Maduro, pressionou o governo Lula para que fizesse o mesmo e mandou representantes para a sua posse. "Perca-se a eleição, mas não se perca a coerência", acredita. Coerência com as crenças da esquerda marxista mais antiga, claro.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), alinhado à mesma escola marxista de primeira geração, seguiu caminho idêntico. Seu líder, João Pedro Stédile, gravou vídeos entusiasmados celebrando a consagração de Maduro nas urnas. Representantes do MST e de outros movimentos sociais brasileiros, como ABI e Unegro, assinaram um manifesto exigindo que Lula reconhecesse a eleição venezuelana, argumentando que isso reafirmaria "nosso compromisso com a soberania venezuelana" e fortaleceria "os laços de amizade entre nossas nações". Mais recentemente, uma delegação da Juventude do MST divulgou vídeos emocionados da posse de Maduro, exaltando a solidariedade entre os povos, em meio a clichês da retórica da primeira geração da esquerda marxista.

Quando Leonardo Boff, também da mesma escola anti-imperialista e anticapitalista, admitiu que Maduro "perdeu a eleição e surrupiou o poder", a reação de seus seguidores foi de profunda decepção. Foi acusado de "servir aos interesses do imperialismo americano" e de acreditar nas "mentiras da CIA". Justamente ele, que nunca perde uma chance de "enfrentar o imperialismo", mesmo que isso signifique compreender a invasão da Ucrânia pela União Soviética... quero dizer, Rússia.

Essa postura fragiliza uma candidatura de esquerda à Presidência. Ela retira o argumento da defesa da democracia e enfraquece a crítica aos autoritários e golpistas de direita. Lula parece ter compreendido isso; seu partido, porém, não. O mesmo vale para o MST, movimentos populares de esquerda e influenciadores da esquerda radical, que não resistem sequer ao apelo de uma retórica socialista vazia.

No fundo, esse dilema revela uma dissonância em parte da esquerda: a dificuldade de conciliar a luta por justiça social com o respeito aos pilares democráticos. Se a democracia continuar sendo vista como um instrumento secundário diante do ideal de igualdade social, sua defesa será sempre vulnerável a acusações de incoerência e oportunismo. Para quem aspira ao poder em tempos de polarização, essa é uma lição que não deveria ser ignorada.

 

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