Folha de S. Paulo
Lula percebeu o quanto sua defesa de
ditadores esquerdistas favorecia os seus adversários
Em algum momento do semestre passado, Lula percebeu
o quanto sua constante defesa de ditadores de esquerda, seu negacionismo diante
do desmonte acelerado de instituições democráticas liderado por aliados de
esquerda e sua complacência com violações de direitos humanos em países
"resistentes ao imperialismo" favoreciam seus adversários.
Adotou, então, uma postura mais cautelosa: distanciou-se de Daniel Ortega, evitou ungir Nicolás Maduro em sua autoproclamada vitória e até endossou a pressão internacional para que fossem apresentadas as atas eleitorais venezuelanas. Pelo que se conhece de Lula, esse esforço de autocontenção não deve ter sido fácil.
Na formação política de Lula, a esquerda é
definida por uma premissa central e algumas convicções. A premissa é que a
igualdade política garantida pela democracia deve ser usada para promover
igualdade ou justiça social. Isso remonta à Revolução Francesa, muito antes do
surgimento do marxismo: ser de esquerda é lutar para superar a desigualdade por
dever de justiça.
Além disso, há um pacote de convicções
típicas da esquerda marxista de primeira geração: a crença de que as forças
genuínas da sociedade estão na base social (basismo); a ideia de que
propriedade e lucro são frutos da exploração do trabalhador (anticapitalismo);
a defesa do alinhamento e simpatia automáticos com as formas de luta dos
trabalhadores (trabalhismo); a priorização da igualdade social sobre a
igualdade política e as liberdades individuais; e a visão de que o imperialismo
capitalista é o grande inimigo da humanidade (anti-imperialismo seletivo).
Com esse conjunto de crenças, é compreensível
o custo de se distanciar de regimes como os de Venezuela, Nicarágua ou Cuba. Um democrata
não teria qualquer dificuldade: são autocracias. Mas, quando a igualdade social
é colocada acima da igualdade política e dos direitos individuais, a decisão se
torna muito menos óbvia.
Caciques do PT, por exemplo, não
se desviaram do seu alinhamento com seus autocratas preferidos. Afinal, ser de
esquerda é mais importante do que ser democrata. E a "democracia que está
aí" nunca foi a verdadeira democracia, que só será alcançada com o advento
do socialismo. Por isso aceitou prontamente a eleição de Maduro, pressionou o
governo Lula para que fizesse o mesmo e mandou representantes para a sua posse.
"Perca-se a eleição, mas não se perca a coerência", acredita.
Coerência com as crenças da esquerda marxista mais antiga, claro.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST),
alinhado à mesma escola marxista de primeira geração, seguiu caminho idêntico.
Seu líder, João Pedro Stédile, gravou vídeos entusiasmados celebrando a
consagração de Maduro nas urnas. Representantes do MST e de outros movimentos
sociais brasileiros, como ABI e Unegro, assinaram um manifesto exigindo que
Lula reconhecesse a eleição venezuelana, argumentando que isso reafirmaria
"nosso compromisso com a soberania venezuelana" e fortaleceria
"os laços de amizade entre nossas nações". Mais recentemente, uma delegação
da Juventude do MST divulgou vídeos emocionados da posse de Maduro, exaltando a
solidariedade entre os povos, em meio a clichês da retórica da primeira geração
da esquerda marxista.
Quando Leonardo Boff, também da mesma escola
anti-imperialista e anticapitalista, admitiu que Maduro "perdeu a eleição
e surrupiou o poder", a reação de seus seguidores foi de profunda
decepção. Foi acusado de "servir aos interesses do imperialismo
americano" e de acreditar nas "mentiras da CIA". Justamente ele,
que nunca perde uma chance de "enfrentar o imperialismo", mesmo que
isso signifique compreender a invasão da Ucrânia pela
União Soviética... quero dizer, Rússia.
Essa postura fragiliza uma candidatura de
esquerda à Presidência. Ela retira o argumento da defesa da democracia e
enfraquece a crítica aos autoritários e golpistas de direita. Lula parece ter
compreendido isso; seu partido, porém, não. O mesmo vale para o MST, movimentos
populares de esquerda e influenciadores da esquerda radical, que não resistem
sequer ao apelo de uma retórica socialista vazia.
No fundo, esse dilema revela uma dissonância
em parte da esquerda: a dificuldade de conciliar a luta por justiça social com
o respeito aos pilares democráticos. Se a democracia continuar sendo vista como
um instrumento secundário diante do ideal de igualdade social, sua defesa será
sempre vulnerável a acusações de incoerência e oportunismo. Para quem aspira ao
poder em tempos de polarização, essa é uma lição que não deveria ser ignorada.
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